in loco - marguerite duras: escrever imagens Nathalie
Granger: A física do fantasma por
Luiz Soares Júnior
Paisagem, objetos de
cena, atmosfera velada e sussurrante de água parada, acariciada pela música de
Satie, a casa. Em sua abertura, Nathalie Granger inventaria a cena e
os personagens de uma história acossada pela morte, de uma história na corda bamba:
no rádio, noticia-se
que dois fugitivos assassinos estão à solta. O filme deveria contar a história
inventariada nos créditos, delinear esta trajetória; temos a cena, temos as marionetes,
temos o tempo e o espaço de uma ação condenada à repartição em atos, découpage
clássica. O plano é uma réverie sobre a imobilidade burguesa, sobre a afasia
da vida plana e regular estilhaçada pela violência da criança; o contraplano é
a sombra do perigo que o rádio anuncia, uma versão “News on the March” da psicose
da criança, do monstro acalentado por esta surdina e esta quietude. A princípio,
as cartas estão dadas, o fim é facilmente discernível, mesmo se ameace romper
a superfície límpida deste refúgio de Monet e Satie com um estilhaço expressionista
de Munch. Mas Nathalie Granger não é este filme; ele quebra o contrato
tácito da abertura; ao invés de se estirar em direção ao drama, de “contar a história
que a abertura e o som off anunciam”, de desvelar o pano de fundo trágico
ou aprofundar as implicações de um teorema sobre a alienação, ele se encastela
à sombra de seus devaneios e transes, se fixa e se nubla. Nathalie Granger
é um filme do entr’acte; da coxia, ou do fora de quadro, se quiserem. Tudo
o que interessa a Duras está em nós, campo magnético e centrífugo onde o automatismo,
o inverossímil e o anódino finalmente encontram um pouso. Na surdina dos gestos
de Jeanne Moreau, limpando a mesa; nas caminhadas estivais de Lucia Bose; no maníaco
discurso de Depardieu, cuja função é despistar o papel do espectador – Depardieu,
nosso duplo -, ressoam os atos de violência recalcados na criança, mas também
a nossa presença.
Depardieu, vendedor inoportuno e tagarela, tenta preencher,
com a saraivada alucinante do discurso e a dislexia do olhar, a história por contar,
o rumo por traçar e as coordenadas do drama, tenta forçar aquelas mulheres e aquela
criança a contarem a sua história, a serem uma história. Mas uma história, para
ser contada (desdobrada no tempo), tem como condição uma abissal profundidade,
horizontal – na seqüência temporal de uma narrativa – e “vertical” , na pressuposição
de que os personagens tenham espessura psicológica, caracteres dignos de servir
de suporte ao desenvolvimento dramático, que as gradações de seu mundo interior
designem marcos para a progressão narrativa. A
profundidade, no entanto, definitivamente não interessa a Duras, ao menos não
a profundidade como alicerce da psicologia. O que lhe interessa em Nathalie
Granger é a duração de estados frágeis e quebradiços – um marasmo sonambúlico
onde podemos colher seixos, pequenos núcleos hipnóticos e ritualísticos, superfície
ondulada e ressoante de correspondências. Os personagens têm um passado, é claro,
a situação ecoa outras camadas de tempo e outras dimensões fenomenológicas, mas
estas camadas e estas dimensões aparecem achatadas no presente, ou antes: perfiladas
uma ao lado (ou sob) da outra. O uso do som atesta na obra de Duras este “achatamento”
das dimensões da presença, esta condensação de vários estágios de tempo e percepção
em um único plano: em India Song, ou no uso do contraplano em Nathalie
Granger, o som adquire este caráter de um vetor de presentificação, um mestre
de cerimônias fantasmagórico cuja função é atestar os níveis subliminares do presente.
O que vemos na tela ecoa espaços ausentes, tempos enviesados, o gesto atual prolonga
ou completa outro gesto, oculto ou interdito, situado num passado (ou num recanto
do imaginário) que não nos é dado a ver, no máximo a ouvir. Em Proust, o olfato
é o órgão “sintético” por excelência, que sutura as camadas do tempo e possibilita
a plenitude fenomenológica, mesmo que de forma canhestra ou incompleta (apenas
uma “promesse de bonheur”). No cinema de Duras, é o ouvido, o som que desempenha
esta função cognitiva e epifânica. Mas ao contrário de Proust – e à semelhança
de Bresson -, não temos como auscultar/apreender o processo em sua totalidade,
como uma síntese transcendental que precede os estágios analíticos. Restam-nos
apenas os traços, os elos frouxos da cadeia, se cadeia há; no caso de Bresson,
unidades finamente delineadas de tempo, mas fechadas em si mesmas, alheias à causalidade
estrita da narrativa. Em Duras, a unidimensionalidade a que o tempo foi reduzido
não é da ordem do episódico, como em Bresson, mas um grau abaixo: do esparso e
do rarefeito; uma outra Física. Estes movimentos evanescentes,
para aspirar à coagulação na tela – à fixação numa unidade mínima de tempo e de
espaço, condições indispensáveis da imagem em movimento, - são petrificados e
estigmatizados através da repetição: o rito. Ritualizados, sua incompletude de
sombras se torna um axioma da finitude. No ocaso do gesto, no traço que se dispersa
no ar sem referente ou profundidade, a fixação. Daí que seus filmes me passam
sempre a impressão de serem álbuns – instantâneos – de gestos em suspensão, de
gritos por bradar, ou ecos de gritos há muito tempo ouvidos e jamais reconstituídos.
Arqui-ecos, arqui-gritos: arqueologia do maneirismo. Uma figura – uma experiência,
uma história – originária se perdeu, mas o molde se mantém, e é o que basta para
a reprodução da matéria, a tangibilidade da forma: um cromo é um cristal que se
destaca da multidão de fantasmas, é sua atualização numa imagem ideal e neutra,
cartão-postal ou miniatura kitsch. Qualquer semelhança com Marienbad e
Schroeter talvez não seja mera coincidência.
O
fantasma da mercadoria – a pulsão que investe um substrato material – advém, mas
em ritmo ternário de valsa e manequins Cartier, pois é preciso lembrar que ainda
somos alma, aura, patrões e idólatras, mesmo sob o neo-capitalismo triunfante-estertórico-renascente-estertórico.
Aliás, sob este ponto de vista, o cinema de Duras é rigorosamente materialista.
Nele, os fantasmas são sempre chamados a se presentificarem, mesmo que de forma
irrisória ou raquítica: balé de sombras. No fundo, está tudo ali, todos os referentes,
os possíveis e os virtuais, o crime por cometer em Nathalie Granger; o
colonialismo como núcleo histórico do narcisismo, em India Song, as vozes
por responder. Mas com o nome ou o lugar trocado, ou estilhaçado, portanto refigurado:
puzzle , ainda e sempre. Em Granger e India Song, o espelho reflete
esta vetorial dispersão do possível, as idas e vindas das mulheres em seu périplo
entre as coisas, no primeiro, a condensação de vários graus da vivência em um
microscópio fascinante, em India Song.
Estrelas-objetos No
caso de Nathalie Granger, o filme também pode ser considerado um catálogo
materialista, na medida em que nos apresenta figuras de star – Moreau,
Bosé e Depardieu – completamente destituídas de aura, de presença, ou enformadas
numa aura “róis da educação sentimental de um zumbi em vilegiatura” nouveau-roman
– o que talvez queira dizer a mesma coisa. Meros objetos de cena, entre outros.
Objetos de cena índex, se quiserem – mas o gato e a música de Satie também o são.
Naturezas-mortas com mal de Alzheimer, instáveis e flutuantes, partículas enredadas
na emulsão de um presente tentacular, sem janelas para o futuro. As janelas não
se abrem para os personagens, ou pelos personagens, mas pelos buracos negros e
desinências, elipses e contracampos do filme. À margem e voltados contra nós,
um pouco à semelhança desses espectros deslizantes que são a sua matéria: folhas
que rumorejam, menina que assoma, gato que queda, serial killer que espreita,
rumor confuso e tatibitate do discurso de Depardieu.
O
cinema de Duras é um grande depósito de objetos de cena, de narrativas e presenças
que perderam funcionalidade/vitalidade, mas permanecem sob os refletores, consumindo
o plano com uma taciturna intransitividade. A progressão e o recuo, típicas da
temporalidade narrativa, sofrem uma necrose: os personagens, os cenários se detém
em um certo ponto e estacam no limiar, contidos agora num círculo. Lasciaste
ogni speranza voi che entrate. Em India Song e Vera Baxter,
temos a suntuosidade do inacabado, sua versão maneirista: museu de cera ou sítio
arqueológico. Os personagens, como habitantes de Pompéia, são flagrados no último
gesto, fulguração icônica que os fixa definitivamente em seu próprio casulo (a
tela). Na repetição ritualística, garante-se a cristalização, a iconicidade. Em
Nathalie Granger, como falei mais acima, encontramos o entr’acte,
o filme de câmara, soturno e impressionista, a novela henry jamesiana que
não chegou ao seu clímax, o biombo das máscaras, o interstício. Se, nos filmes
anteriores, os personagens é que eram transformados em “rastros-pegadas”, monumentos
funerários destinados a representar um cataclisma que abolira o passado – o curso
do tempo – e só deixara destroços pelo caminho, em Nathalie o passado –
ou o interdito, na figura da violência – é que aparece como rastro, como traço,
basicamente na forma de elipses. Ficamos só com a “travessia” das ações e inações,
Duras elude constantemente os inícios e os fins: plano rasurado, esgarçado, jamais
cristalizado ou acabado, sempre “à espreita de” e “à margem de”, como uma sonata
feita apenas de intermezzos. Ou na permanência do
plano vazio, depois que os personagens o abandonaram, um rastilho esmaltado de
presença, um plano subitamente reinvestido de aura, "que ainda nos devolve
o olhar". Ou ainda nos contraplanos de objetos em aparência in-significantes,
que vêm se intrometer/interromper a transparência de uma ação ou diálogo. Objetos
ou seres: uma boneca, um gato. O passado – ou o interdito, ou o fantasma – agora
está “à escuta” da situação/do personagem; não mais como escombro, como em outros
filmes, mas como inscrição, uma leve “marca” ou inflexão, que possibilita conexões,
engastes e projeções. Como algo que nos permite, não aprofundar o plano (causalidade
psicológica, vertical), “contar uma história”, atualizar uma camada temporal,
mas espraiá-lo, desdobrar uma trama de impressões; uma nitidez maior da visão
(do ouvido também), mas por hipermetropia: vê-se mais à distância e amplamente.
A intromissão do fantasma é menos “estruturada”, mas nem
por isso menos pontual: ele se apresenta num ponto de vista que frequentemente
enquadra as ações das mulheres à uma voyeurística distância, através geralmente
do cadre de janelas – vide a cena em que ambas acendem uma fogueira no jardim,
em que há uma delimitação precisa deste ponto de vista “alienígena” (imagens acima),
na caminhada de Moreau, seguida em toda sua extensão pelo reflexo no espelho da
água (abaixo, à esquerda) ou no belo plano final, quando este mesmo ponto
de vista surpreende Dépardieu em fuga (abaixo, à direita) – ou dos reflexos
no espelho, mas sobretudo de acordes do piano, cuja cadência, em momentos determinados,
se encarrega de plasmar a presença interdita, de sinalizar o olhar que realmente
domina a situação (Lucia Bosé, diante da janela, é “chamada” pelo acorde a prestar
atenção, a voltar a cabeça para a direita; o piano é o sismógrafo que registra
as investidas do interdito).
A
Física do Fantasma
Em Granger, o espaço está menos atravancado
de memórias e de projeções, já que a fantasmagoria dos filmes anteriores foi de
alguma forma materializada num ponto de vista (uma instância de presença entre
outras, mas com visão privilegiada, panóptico ou panorama), foi portanto “limitado
e enquadrado”. Um ponto de vista ou um posto de observação e controle? Metáforas
paranóicas à parte, no território mais rarefeito aberto por esta subordinação
do fantasma à perspectiva, por esta delimitação e enquadramento da presença-ausente
que, em India Song, se disseminava estruturalmente por todo o filme e não
deixava espaço para os personagens respirarem, aqui eles podem até se dar ao luxo
de passear (como Lucia Bose, com sua capa de Chapeuzinho Negro) ou de simplesmente
nada fazer, ou fazer de forma lúdica, distraída e porosa, como parecem ser todos
os movimentos de Jeanne Moreau – no entanto jamais tão incisiva e esfíngica. Ao
mesmo tempo, esta aquarela de digressões cotidianas em que é o filme está cercada
por um potencial filme de terror, olhar estrangeiro à diegese narrativa, e cujas
centelhas ameaçam, em momentos-chave, liquidar a transparente e cristalina “partie
de campagne” de duas mulheres, uma cabana e uma criança no verão. Há
um aquém e um além do filme, um substrato mais profundo e uma superfície acima
da superfície, que o infiltra: o nível mais interior e anterior, a psicose da
criança, ecoa o estrato superior, a violência dos fugitivos, com suas prováveis
implicações sociais. Fiat Lux: o filme se mostra, aliás, um objeto particularmente
poroso a qualquer tipo de invasão e influência, matéria evanescente e aquosa,
feita de luz, treva e tempo. O drama de câmara é apenas a fatia, a face doméstica
de uma crise exterior, o laboratório de provas de uma demolição sistemática do
sentido, ambidestra e dialética, que se inicia nos vãos mais recuados da consciência
e se prolonga até os limites mais ex-táticos do ser social. Como em Freud, a consciência
em Nathalie é apenas uma fina superfície, cuja função é meramente funcional:
impedir que verdades demasiado dolorosas, ou monstros demasiado nossos, verdades
interiores e exteriores, venham à tona e estilhacem o sujeito. Porta de comunicação
entre realidades transversais e bivitelinas, no seio das quais o sujeito agoniza. Novas
dimensões se abrem em Granger, do plano médio ao plano geral: a concentração
no instante, no ato “como instantâneo”, o irrisório dos atos e o horizonte de
horror que os situa – um mosaico de compassos impressionistas enquadrado por um
filme de horror – a precisão de ourives e unção ritual com que os atos são diafanamente
perpetrados transforma o filme num daqueles caleidoscópios fantasistas que foram
o ideal atmosférico do século 18. Uma obra que condensa várias cápsulas espaço-temporais
num único continuum, que nos leva a experimentar o horror e o caos num
raio de sol sobre o dorso de um gato, a aprofundar o olhar de uma criança e vislumbrar
a psicose que lhe dá um magnético brilho ou a nos identificarmos com um espelho
que contém, em sua envernizada e plana superfície, profundidades insuspeitadas,
um vaudeville letárgico ou um grand guignol em stacatto.Uma
sucessão de inflexões que os românticos elegeram como privilegiadas, invólucros
da Infinitude enxertados no tempo imanente: efígies que verticalizam (ma non
troppo) o instante, sucumbem às suas profundezas e emergem, renovados. “(...)
come piante novelle rinnovelatte di novella fronda...”. Produzido
por Luc Moullet e fotografado por Ghislan Cloquet, Nathalie Granger ainda ecoa
estas influencias: é um estudo burilado em água-forte grisâtre sobre as
intermitências da duração, a virulenta gravidade de seus estados e a precisão
mineral de seus objetos.
Maio de 2009 editoria@revistacinetica.com.br
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