Dúvida
(Doubt), de John Patrick Shanley (EUA, 2008) por
Eduardo Valente Medo
do palco
Sob todos os aspectos, Dúvida é um filme
sob o signo do teatro. Não só por ser baseado numa peça original escrita por seu
próprio diretor no cinema, mas acima de tudo porque sua intriga principal diz
respeito aos diferentes níveis possíveis de “interpretação” da parte de seus personagens
(e que o filme faz questão de não esclarecer). Neste sentido, a escolha do casal
de protagonistas Meryl Streep e Philip Seymour Hoffman, os mais fortes representantes
hoje dos chamados “actor’s actors” (ou seja, aquele ator que usa do método de
interpretação supostamente mais sofisticado na sua construção, unindo técnica,
experiência e moldagem física), soa especialmente sagaz, pois para além do fato
de emprestarem uma automática “dignidade artística” ao projeto (algo importante
no aspecto pragmático de uma produção claramente pensada para o público dos “filmes
de Oscar”), de fato eles criam uma segunda camada à idéia mesmo de interpretação,
central para seus dois personagens. Pois, de fato, quando o padre Flynn (Hoffman)
e a irmã Aloysius (Streep) duelam, trata-se ao fim e ao cabo de um duelo de performances
– algo que soa particularmente notável na cena dos dois com a freira interpretada
por Amy Adams, que passa a interpretar em cena uma encarnação do público. John
Patrick Shanley demonstra bem cedo estar absolutamente consciente desta dimensão
que seus atores trazem, como deixa claro pela forma como introduz os dois personagens.
O padre, no púlpito, faz seu sermão para a congregação, num estilo de interpretação
que usa ao máximo o poder de sedução cativante da fala do ator – poder de sedução
este que, afinal, será tema do filme todo. Já a freira/diretora da escola surge
como uma presença “maior que a vida”, apresentada numa linguagem típica dos filmes
de suspense, onde o significado maior da personagem está construído antes mesmo
de vermos o rosto de Streep. No caso da personagem de Streep vale notar ainda
dois outros usos de elementos cênicos: o desenho de som que torna os ruídos que
ela produz especialmente altos e secos, sempre impositivos; e o próprio desenho
do hábito das freiras em torno do rosto, que cria com um jogo de luz uma iluminação
quase artificial, como se jogasse aqueles rostos para uma dimensão extra-física
(algo que será usado de formas bem distintas para os personagens de Streep
e Adams). Depois de uma primeira meia hora dominada por um
inesperado timing cômico, marcante em especial na maior parte das cenas
com as freiras, onde a autoridade que emana de Streep é tal que podemos sentar
e aproveitar sua verdadeira diversão dando corpo a esta personagem de megera,
o filme começa a assumir um tom lentamente assustador na medida em que aquilo
que parecia um jogo de poder banal vai tomando corpo numa perseguição desmesurada.
Neste momento, Shanley deixa claro que seu filme não está tão preocupado com a
questão religiosa por si, mas sim com a força desmesurada do conservadorismo do
poder quando ameaçado – conservadorismo entendido no sentido estrito do termo
mesmo, na necessidade de “conservar” as coisas como estão, no autêntico pavor
e ojeriza pela possibilidade de qualquer fato novo. De novo aí, o uso que o filme
faz de Streep é brilhante, pois cabe a ela dar o tom na transformação da megera
quase anedótica do começo para o dínamo da conservação – em ambas as instâncias
fazendo um uso de uma tecnicidade de performance cuja aproximação limítrofe com
o overacting parece absurdamente estudado, construído. Na
união destes elementos, Dúvida poderia resultar num filme impressionante,
o que até chega a ser em sequências isoladas. No entanto, o cineasta Shanley revela-se
menos feliz como elaborador visual do seu filme do que da sua dramaturgia, e com
isso o filme sofre de pelo menos dois latentes problemas – ambos resultantes de
uma mesma falsa preocupação com uma possível a “teatralidade excessiva” do material.
Vemos isso primeiro quando, seguidas vezes Shanley apela para enquadramentos tortos
absolutamente despropositados, como que acreditando que para desestabilizar seus
personagens ou espectadores ele precisasse fazer isto literalmente com sua câmera.
Demonstra considerável ingenuidade neste uso da linguagem, que resulta sempre
distrativo, retirando energia do que realmente importa no filme (os atores e suas
palavras). O segundo ponto é bem menos óbvio, mas talvez
seja o mais insidioso: a explosão final da personagem de Streep busca dar a ela
uma “humanidade psicológica” que, embora aparentemente empreste ao filme toda
uma camada de complexidade, na verdade o mergulha num relativismo um tanto tolo
e demagógico. Ali o filme assume uma modalidade de interpretação que não está
em jogo em nenhum outro
momento de sua narrativa – com exceção da personagem de Viola Davis, a mãe do
menino. Ambos são, de fato, clichês naturalistas de boas interpretações: técnica
precisa, psicologia aparentemente profunda, complexidade assegurada a golpes muito
bem estudados de escrita. Mas, na verdade, são momentos que tornam Dúvida
só mais um filme que tenta seguir um molde de um naturalismo contemporâneo de
alta arte. Conseguem certamente colher algumas lágrimas bem semeadas do espectador,
e dão grande visibilidade a seus atores (a ver pelo reconhecimento a Davis com
seus poucos minutos de tela), mas seu poder bem estudado e marcado são de fato
muito mais conservadores formalmente do que o teatro desestabilizante que Dúvida
consegue criar quando não está envergonhado de sua teatralidade originária. Março
de 2009 editoria@revistacinetica.com.br
|