in loco - cobertura dos festivais
Éden, de Bruno Safadi (Brasil, 2012)
por Filipe Furtado
A
salvação pelo cinema
Éden contém dois blocos de flashbacks:
num deles, acompanhamos o encontro entre Karine (Leandra Leal)
e o marido; no outro, a angústia dela ao acompanhar sua
morte. São o céu e o inferno da existência
da personagem que, ao longo da maior parte do filme, existe num
espaço suspenso, um purgatório constante. Karine
– grávida, confusa, com raiva – está
em todas as sequencias de Éden, e Bruno Safadi
constrói seu filme à sua imagem, o mantém
sempre equilibrado numa tentativa de representar com justiça
a sua dor. Éden é compacto (pouco
mais de setenta minutos), claro e direto; as coisas nele são
sempre o que são.
Não
deixa de ser notável que, num filme lidando com religião
– tema espinhoso que tende frequentemente a ser filmado
como território da dissimulação fácil
–, busque-se sobretudo chegar até as coisas. O filme
reconhece que qualquer crítica honesta sobre o assunto
parte de uma olhar materialista. Éden é
um filme sobre abandonar este purgatório, que acredita
muito na sua própria capacidade de carregar sua personagem
até lá. Um filme assombrado por estes dois flashbacks
e convicto de que conseguirá chegar numa imagem que interrompa
este processo e tire Karine do lugar. O filme é toda a
busca por este ponto de fuga, este momento de ruptura.
Há uma maneira muito preguiçosa de ver a religião
como terreno exclusivo da ignorância, uma preguiça
que se torna especialmente tentadora e perniciosa num momento
em que a ascensão política de representantes dos
evangélicos se tornou uma pauta central na vida do país,
que Éden dribla com desenvoltura. O filme reconhece
que o que turbina o culto religioso no fundo é um misto
de emoções e desejos não tão distantes
assim dos sentimentos que o próprio Bruno Safadi usa como
combustível. Dada a falta de ficções sobre
o tema (o que por si só diz muito sobre as limitações
do cinema brasileiro hoje),
Éden já mereceria algum destaque só
pelo tato da sua abordagem, que é somente um dos seus muitos
pontos fortes. Bruno Safadi não esconde o paralelo, a despeito
das evidentes diferenças de crença, entre seu ofício
e o do pastor interpretado por João Miguel (a certa altura,
existe até uma cena bem óbvia na qual Miguel dirige
as depoentes para um vídeo institucional em frente a um
monitor). Cinema é, afinal, a mais católica das
artes, embebedada como é no seu pacto de crença
da parte de realizadores e espectadores. Logo, faz sentido que
os planos cinematográficos de Bruno Safadi trabalhem eles
próprios os mesmos sentimentos tocados pela oratória
do pastor para buscar a sua ideia muito diferente de salvação.
Se muitos filmes com estrutura similar a Éden
(ou seja, assombrados por um momento anterior, seja ele nos planos
iniciais, via flashback ou mantido fora de quadro) são
frequentemente travados dentro da sua existência pós-paraíso,
Éden flutuará sempre, mesmo nos seus momentos
de dor mais profunda, amparado que está na sua certeza
de que, como cinema, será capaz de retornar àquele
momento inicial. Trata-se de um filme completamente dominado por
uma percepção da sua personagem central, mas que
ao mesmo tempo trafega com grande facilidade para um olhar objetivo
sobre a mesma personagem, dotado da certeza que suas imagens são
todo o suporte que Karine precisa.
Bruno
Safadi, como já mostrara em Meu Nome é Dindi,
gosta de pontuar seus filmes com momentos de horror à Polanski
em que a câmera enquadra sua protagonista com uma violência
desestabilizadora. Estes momentos à Repulsa ao Sexo
eram os piores do longa anterior e ainda parecem um pouco deslocados,
mas ainda mais fortes aqui. Há, nos planos de Éden,
uma tendência a sempre isolar Leandra Leal no quadro: mesmo
quando ela interage com alguém, é como se a atriz
seguisse num constante solo (há ecos desta ideia em trabalhos
anteriores de Safadi, mas nunca com a força e dedicação
exibidas aqui). Existe no filme o coletivo da igreja e a dor individual
de Karine, e elas correm paralelas, sem jamais convergir.
Um pouco disso se deve à própria presença
de Leandra Leal – que carrega o filme com muita força
- cuja guarda nunca baixa no seu luto particular. Mas outra parte
provém da câmera que se deleita em mantê-la
neste estado de tensão física constante. Se Meu
Nome é Dindi era uma série de planos musicais
individuais que se completavam, Éden é
uma peça bem mais coesa em que, aparte seus dois flashbacks
longos que intencionalmente lhe interrompem, um mesmo longo bloco
de sentimentos converge. O cinema de Bruno Safadi segue com uma
lógica musical (“cinema é música da
luz” já diria o grande Jairo Ferreira, e desde Julio
Bressane não temos um cineasta que assume esta ideia com
tanta desenvoltura), mas desta vez trata-se de uma peça
tempestuosa, equilibrada até o último minuto na
sua busca por uma nota feliz.
Outubro de 2012
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