ensaios
Dupla alteridade
Ela Morava na Frente do Cinema, de Leonardo Lacca
por Luiz Soares Júnior

“Moura Dubeux chegou à decadência sem conhecer a plenitude”.
Oscar Wilde sobre a cidade do Recife quando passou por aqui ano passado; 

“O único saber que se supõe aqui consiste no uso de nossa memória; ela só nos permite apreender a manipulação do tempo como imagem, tornada possível pela “subtração” de nosso corpo atual. (...) As coisas não advém no horizonte de um sentido oculto, esotérico, mas da relação difícil – diria mesmo vacilante – entre as coisas visíveis e um segredo que só pertenceria a elas”.
Jean Louis Schefer, "O Homem Comum do Cinema";

“Tão logo contemplamos outros videntes, sabemos que através de outros olhos estaremos para nós mesmos absolutamente visíveis. Pela primeira vez, a visão que eu sou torna-se visível para mim; pela primeira vez, apareço para mim mesmo absolutamente voltado para mim mesmo diante de meus próprios olhos”. 
Maurice Merleau-Ponty, "O Visível e o Invisível";

“O mistério dos seres se oculta em sua aparência, ou mais precisamente na tautologia metafísica de sua forma física. Pensar a coisa, tentar captar-lhe o mistério é passar de uma forma para outra, do corpo carnal ao corpo sutil (...). Não postular a evanescência da aparência, mas o contrário: levar a aparência à incandescência para transformá-la em representação”.
Mylene Buydens, "A Imagem no Espelho".

Alguém (Benjamin?) escreveu que o ser humano nasceu para deixar rastros. Mas estes rastros – ou pegadas – têm uma destinação precisa e fatal: são para um Outro. Eles se destinam a um outro – ou conjunto de Outros: a comunidade possível, a família abjurada – que detenha a chave de sua significação, e possa, na modesta medida de nossa finitude, perpetuá-los; uma geração nos basta de Eterno, muitos não terão sequer o final de semana. Mas a economia do rastro se engendra neste movimento, recíproco e sincrônico, de transmissão, distribuição e troca; capital ontológico de rendimento a longo e improvável prazo, juros altos como no Brasil.

Mas é o que nos resta: restar e gastar, desperdiçar signos de que um dia fui, na esperança de permanecer presente quando ausente. História da carochinha para o filho imberbe, foto, rascunho em papel de pão, cachinho de cabelo, Me chupa! estriado de mijo e pederasta leniência num banheiro público. Todos estes rastros só existem, porém, a posteriori (como a posteriori, póstumos e pósteros): é na esperança de que exista alguém – ao fim do caminho ou no último vestíbulo da escola abandonada, na cadeira de cinema ou diante do túmulo – para lê-los que a aventura se põe em marcha. No entanto, este status elegíaco e itinerante do rastro-signo tem conhecido, no universo de degradação físico e existencial de cidades cada vez maiores – mais distantes de nós, mais in-significativas –, um destino menos glorioso.

Uma estranha transformação na temporalidade do rastro vem se manifestando; este abdicou da intransitividade do futuro utópico, do possível – para quando eu não estiver mais aqui, como presente do presente que um dia fui... O rastro agora se aferra e se aterra ao mísero presente da ruína. Como o estranho objeto Odradeck do "Preocupações de um Pai de Família", de Kafka – verdadeira aporia ontológica que arrasta sua mendicância de ser pela casa sem achar um lugar para si, e permanece um enigma para o circunspecto pai de família – o rastro, que deveria ser meu, que deveria atestar minha existência (ser o efeito dela), me defronta como um ovni – como algo que, embora devesse pertencer a mim (pois afinal o que estaria fazendo em minha cidade e no meu caminho?), no entanto permanece irredutivelmente Outro. O Unheimlich de Freud aqui é preciso – e precisamente perturbador –, e diagnostica este pesadelo existencial em que as novas e aterradoras cartografias urbanas têm transformado a experiência de todos nós.  É um conceito que assinala justamente a imbricação – presente à consciência pela mediação do recalque, desvendada pela análise – entre o familiar e o estranho, o interdito e o querido, o Mesmo e o Outro. É achar um ar de família no monstro, e um lobo no espelho.

Esta experiência de desterritorialização fenomenológica que Ela Morava na Frente do Cinema nos dá - uma espécie de inventário fantasmagórico - é uma constante em filmes de terror que trabalham justamente um certo devir das formas no domínio das espécies e do indivíduo, a ontogênese e a filogênese. São filmes sobre as origens, sobre a origem de nossa identidade – ou da identidade de nossos grupos, o que confere uma dimensão política suplementar à existencial. Necessariamente são filmes de terror, pois em toda investigação deste quilate fatalmente vamos encontrar Outro jazendo no fundo de nós mesmos, e este embate será arena fatal para um dos contendores, no modelo fratricida do reconhecimento hegeliano pela consciência. Nicole Brenez, em seu belo estudo sobre Abel Ferrara, analisou sua adaptação do filme de Don Siegel (e do de Philipp Kaufman), The Body Snatchers, e tratou de inseri-la numa complicada (e muitas vezes literal, o que não é o caso) filiação analítica que não nos interessa aqui. O importante a se reter é uma certa vivência (in vitro?) da alteridade como alienação ou violenta cisão, em todo caso, impossível reconciliação; o episódio psicótico e o sistema paranóico aqui encontram um mesmo e outro corpo para compartilhar.

Acrescentaria livremente aos filmes mencionados outros degredos de possessão e contaminação menos exclusivas ou invasivas, ou mesmo metafóricas: 2001 e seu autômato mais que humano, diluindo todas as fronteiras possíveis a um bólibo vertical e que não possui Windows; Persona e seu duplo fantasmagórico, reflexo por sua vez do casal formado pela matéria pelicular e pelo pneuma (espírito) da projeção de cinema; os filmes de Carpenter, quase todos colocados sob o signo da possessão de Mesmos por Outros e o travestismo de Outros em Quaisquer – paranóia ubíqua e eterna, gemelidade do Mau e do Absoluto; Síndrome de Stendhal de Argento, seu filme electriano e perverso, em que possui a filha e a traveste de homem para que possua todos os outros corpos, figurativos (os quadros de Giotto, Masaccio e Goya, que infestam o filme e infectam a cabeça da moça) e presentes; e talvez o filme mais radical em matéria de transgressão de  fronteiras, espirituais e materiais – ou mesmo entre Matéria e Espírito, Mito e História –, Les Maîtres Fous, de Jean Rouch.

Em Ela Morava na Frente do Cinema, esta cisão se dá no domínio do ponto de vista - e índice mais incisivo de estilhaçamento da unidade de uma experiência não há. A moça está numa agência para consertos de eletrônicos: quer consertar uma fita VHS. Em certo momento, pede a um apático atendente para ir ao banheiro. Corte - e o que parecia a princípio um plano subjetivo da mulher em trânsito por um espaço novo se transforma num desorientador ponto de vista alienígena (ou antes: um literal efeito de alienação)  que a princípio a acompanha em sua investigação casmurra, mas prossegue em direção à sala dos fundos, onde irrompe sobre uma fileira de empregados autômatos, com quem não pode interagir nem contemplar (apenas), pois é um fantasma. Um filme diário vigiado (e possuído) por um filme sobre ficção científica. (Há uma inclusão de ponto de vista alienígena semelhante, mas num outro contexto, e segundo outra trajetória fantasmagórica, na obra-prima Dilinger é Morto, de Ferreri: uma câmera na mão subjetiva sobre um armário de enlatados, mas que não pertence ao dono da casa nem à mulher, drogada na cama).

Em Ela Morava..., toda inspeção do espaço é interrompida por uma brusca irrupção do mundo; mas não como situação ou abordagem fortuita, no espaço-tempo do plano médio que habito e me habita; o mundo se põe como obstáculo, geralmente através de objetos parciais – planos médios, closes ou zooms que achatam e restringem o campo de jogo da personagem – auscultando o território da Cidade como um desolado canyon de ruínas – ou imagens desconectadas de qualquer percepção subjetiva, como as que abrem o filme: registros casuais, automáticos ou anônimos, como o VHS da criança, cuja origem e destinação nunca nos será dado a conhecer, assim como de nenhum dos rastros que deveriam me pertencer, mas já não dizem nada de ninguém nem para ninguém: “Ela morava defronte deste cinema”, mas o que nos fala é uma voz off cuja presença não aparece no filme e, diante de imagens – ou imagens filmadas por um plano, para ser mais fiel à problematização da questão colocada por Pascal Bonitzer – que não correspondem a nenhum olhar – ao menos um olhar identificável na diegese; pois cinema só começa a partir de um ponto de vista, questão ética e estética (julgamento sobre o mundo). Arriscaria dizer, aliás, que não há ser sem ponto de vista, não?

Temos este “ponto de vista” alienígena do banheiro, que nos desvela um espaço de transe e alienação no seio do casual e do conhecido como se a camada da infra-estrutura, devassada aqui como um espaço horizontal, emergisse e abrisse uma cratera (a janela ao fundo), verdadeiro Unheimlich sócio-econômico. Só que esta “perspectiva alien” fizera sua intrusão desde a abertura!, no foco funcional, mecânico e casual do VHS, câmera do prédio; e perto do fim do filme, uma hipnótica rima terciária sob a forma de zoom liga os dois extremos de paisagens mortificadas (sem mim), quando o zoom sobre a placa do edifício do início é repetido sobre o tronco decepado; o círculo se fecha.

Sabemos pelos estudos de Cacciari sobre Arquitetura e niilismo, e pelo cinema de Antonioni, que rondar e retomar um espaço é a alternativa ao enclausuramento paranóico, à entropia do sala e quarto com gim tônica. E sobretudo: sempre e ainda à caça de rastros, detecção de pegadas, acumulação e dispersão de signos pelo personagem que gerem um encontro entre o Mesmo e o Outro (ou atualizem esta relação, muitas vezes traumática e perturbadora, sob a forma de um encontro). Acima, falei da interrupção oposta pelo mundo a qualquer tentativa de tráfego/trajeto de Paula pelo espaço. Zoom como adstringência do espaço, ponto de vista ovni, disseminação de ruínas sobre a superfície do plano/cratera.

O único espaço que lhe cabe é o espaço concentracionista (enquanto espaço) da expectativa; Renata espera o filme todo, e nisso não há perigo: nada vem interrompê-la, no quadrante fixo (fixador) do reduto de trabalho ou da apatia compartilhada (com exceção da entrada no Cinema da Fundação, espécie de ascensão só permitida a cinéfilos, seres que ainda crêem nas possibilidades redentoras do vertical). Lembro-me de uma observação de Georges Charbonneau: “Assumir uma pose é sair de sua própria vida viva para entrar no mundo das figuras, para se figuralizar”. É isto: o plano seqüência incide sobre uma figura – um ser castrado de devir e manobra, ser ídolo ou superfície; quando esta se agita e “ameaça morder” (vasculhando o espaço ao redor, atuando), temos o corte para o mundo – agora radicalmente figuralizado, fossilizado. O corte, esta síncope em sfumato tão prezada no cinema de um Malick, aqui suscita uma violação da subjetividade pelo mundo animoso – como se um bloco de concreto fosse a nosso encontro numa esquina casual, e nos forçasse a recuar e recuar – até o aprisionamento no plano final, Dies Irae caseiro.

Mas há um elemento redentor neste deserto, como em todos; é que Lacca enfatiza sempre nos encontros da moça uma dimensão temporal, espécie de válvula de escape para a experiência (possível); assim, no café é interrogada sobre “O que farás amanhã?"; o rapaz que a aborda na saída da rave (e que solicita que ela espere por ele, que volta logo), ou a conversa com a namorada, perguntando se amanhã pode acompanhá-la ao aeroporto. Se o espaço está obstruído por um mundo arruinado que se substitui a mim e me transforma no contracampo do real, resta-lhe o tempo, horizonte metafísico de potências que parece ser o único à disposição do nobre destino do rastro – ser para um Outro futuro, utópico –, assinalado no começo deste texto. Então, temos o caricioso e grato tempo reservado ao namoro, à espera – sem a qual não há sentido para a pistis (fé) paulina ou para a Esperança judaica –, o cálido tempo que consiste em ocupar o próprio círculo de presença e nele resistir.

Rohmer escreveu que cinema é uma arte do espaço, sobretudo o cinema clássico – um cinema do plano. Mas o que ele colocava é que este espaço é o espaço diferencial do movimento. Só que não há percepção de movimento sem tempo, sem a noção transcendental (estrutural da nossa forma de perceber e conhecer) de uma diferença do (no) tempo, que nos leve a perceber a mudança no espaço como mudança. O tempo no cinema é princípio de demiurgia: metteur en scène de presenças, vita activa. Incrustado neste espaço semicircular e estrabicamente paranóico do carro ou do corredor, infiltrado no contracampo da moça contra nós (ao café). Tempo é fé e promessa; e não há vaticínios de utopia que melhor tenham resistido no Ocidente, pois ambos vivem de uma experiência temporal da transcendência. Logo, humanamente finita e justa, à justa medida do que esperamos.

Uma última palavra: o VHS talvez tenha sido a invenção tecnológica caseira que tenha propiciado exatamente uma experiência cinefílica, e não por acaso é referência para um filme sobre um Bildungsroman impossível. Uma experiência: uma ativação do Eros cinefílico pelo toque – nem sempre caricioso –, pelo trabalho com a matéria (rebobinar), pelo lidar e ser lidado pela coisa, face a face com a coisa. O cinema, para quem viveu a era do VHS, foi pela primeira vez uma coisa, um corpo como o nosso; corpo onde se engastaram pulsões e afetos – espectros que não estavam ali, como em toda coisa na qual o bicho simbólico homem põe a mão. Mas coisa mesmo assim. Cinema na sala de cinema sempre foi projeção (literal e fantasmagórica); ou seja, apenas fantasma. Daney: “Uma tela é tudo, menos uma janela para o mundo; ela é cú, hímen, todo buraco por onde passa o simbólico, mas jamais janela (leia-se: transparência)”. Cinema no DVD é artefato virtual (fantasma). Cinema no cabo é punheta (fantasma, e com Ewald Filho comentando!). A imagem que (res)guarda os olhos da criança no filme de Lacca é uma imagem, ok: signo, virtualidade, projeção, fantasma. Mas está inscrita sobre uma presença que arranha, fere e morre. Se o cinema (no cinema, na TV e no DVD) foi fantasma, no VHS ele foi meu e de todos nós.

Maio de 2012

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