O Guardião (El Custodio),
de Rodrigo Moreno
(Argentina/França/Alemanha/Uruguai, 2006)
por Cléber Eduardo
Com rigor, mas não sem problemas
Ruben
é o segurança de um ministro argentino, interpretado com força
minimalista por Julio Chavez. Acima de tudo, ele é um olhar
e um ouvido, um voyeur profissional, uma câmera de vigilância
em permanente estado de alerta, que, se passa a maior parte do
tempo assistindo fragmentos de intimidade de seu chefe e da família
dele, tem de estar pronto para entrar em cena, para intervir no
palco se algo sair fora do script. Quando não está no banco da
frente do carro oficial do ministério, ou atrás do ministro quando
esse caminha, Ruben fica do lado de fora quando as portas se fecham,
sempre aguardando ordens, solitário e em silêncio, sempre na posição
de um observador que não é imagem aos olhos dos outros, de um
ouvido que não é voz para quem está ao redor. Quando solicitado
a interagir socialmente, é para desenhar – uma de suas habilidades,
também sustentada pela observação. Encerrado o desenho, ele se
afasta da câmera e dos demais personagens, saindo lentamente do
foco até se tornar abstração, uma expressão visual de sua condição
ali. Ruben é um documentarista observacional que só vê pedaços
da realidade próxima, sem poder intervir nela, sem poder ser visto
porque quem está sendo observado, ao menos até abandonar a postura
de cineasta sem câmera e se tornar ele mesmo um ator em um momento
sem platéia.
Sendo este personagem, antes de mais nada, um
olhar (mas não uma imagem) aos olhos alheios, não será uma imagem
também aos nossos olhos – ou ao menos, não será uma imagem com
muitos significados além de ser um olhar. Nada sabemos sobre ele,
porque, antes de ser um filme sobre o sujeito, O Guardião
é um filme sobre a experiência observacional desse sujeito. Assim
sendo, ele é um mistério, um personagem despido de subjetividade,
psicologia e motivações, um não-sujeito enfim. Portanto, ao final,
ao tomar uma atitude pouco esperada, cria um desconcerto. Por
que razão age como age? O que se passava em sua cabeça? A imagem
mais esconde que revela em O Guardião e, nesse sentido,
os planos extremamente recortados são conceituais, pois visam
ofertar apenas pedaços, muitas vezes investindo no extracampo
como complemento informativo.
Planos
extensos, câmera no tripé, enquadramentos de composição rigorosa,
silêncios sufocantes e um ar de enigma em torno do protagonista,
que, mesmo no final, não se dissipa (pelo contrário). Ao acompanhar os
percursos e os rituais de espera do personagem, o diretor empenha-se
mais em firmar uma assinatura autoral (às vezes afetada por cacoetes
de autorismos) do que em aproximar-se de seu personagem de maneira
mais direta. Questão de opção: Rodrigo Moreno parece estar mais
preocupado com seu estilo em gestação do que com a apresentação
de sua criação humana. Mas seu estilo, logo se percebe, tem um
brilho. Esse engessamento proporcionado pelo estilo,
pontuado aqui e ali por "momentos de efeito estético",
só é quebrado em uma seqüência, quando, em um restaurante chinês,
a energia humana supera a austeridade da encenação, abrindo uma
nova porta para o filme. No entanto, Moreno faz logo questão de
fechar para retornar a seu caminho em linha reta, seca e dura.
Redundante sim, sem dúvida, porém coerente. E, o que é mais
importante: em sintonia com o protagonista. A repetição faz parte
de sua rotina e aboli-la ou atenuá-la seria saída fácil.
Se, em algumas passagens, Moreno acomoda-se com
seu projeto, apenas mantendo o padrão bem sucedido sem se arriscar
muito dentro da proposta apresentada, é preciso aplaudir pelo
menos dois planos, não pelo que representam, mas pela forma de
organizá-los. Um é a imagem do ministro comendo em uma lanchonete,
filmada como uma subjetiva de Ruben (subjetividade sem subjetividade),
durante a qual ouvimos a respiração do segurança, separado de
seu chefe por dois obstáculos (o vidro frontal do carro e da própria
lanchonete): situação que sintetiza a distância entre um e outro,
sem nada precisar ser dito em nenhum momento. Aoutra imagem brilhante
é a da mãe de uma prostituta com quem ele vai começar a transar:
depois da filha apagar a luz do quarto, vemos a sombra da mãe
se aproximando da porta, como se ignorasse a presença do "casal"
ali, mas, em vez de entrar, ela fecha a porta e o plano fica todo
no escuro. Moreno recusa a imagem da intimidade de seu protagonista
ali, ao contrário do que o protagonista faz com seus protegidos.
Não deixa de ser um contraponto à seqüência em que Ruben espia
a filha do chefe masturbando um namoradinho no banco traseiro
do carro. Ao filmar a porta sendo fechada pela mãe, ficamos dentro
do quatro, na escuridão, mas é como se ficássemos de fora. Filme
e personagem, nesse momento, se dissociam.
O final de O Guardião, ao menos à primeira
vista, complica as coisas. Primeiro porque traz à tona uma situação
que evidencia o tumulto minimalista de Ruben, explicitando um
ressentimento com sua condição de "não-imagem", de "não-sujeito",
levando-o a agir de forma que, na entrelinha, sua relação com
o chefe traz algo para além dela, um acerto de contas social,
ou mesmo contra o que representa o ministro (o Estado, a Argentina).
Transferir a lógica interna para uma lógica exterior, sem dúvida,
é um risco de empobrecimento para o rigor de Moreno. Ainda mais
quando o plano final (quase o mesmo de Os 12 Trabalhos,
de Ricardo Elias, que é quase o mesmo de Abril Despedaçado,
de Walter Salles, que é quase o mesmo de O Selvagem da Motocicleta,
de Francis Ford Coppola, que é quase o mesmo de Os Incompreendidos,
de François Truffaut...) insinua um evidência de liberdade. Esse
momento de catarse, de reação ao que está em seu entorno, tanto
remete a Taxi Driver, de Martin Scorsese, como alguém comentou
na saída da sessão, como a Batalha no Céu, de Carlos Reygadas
– embora a mise-en-scéne dificulte a aproximação com os dois
filmes e, mais importante, a visão final do personagem seja menos
asfixiante enquanto imagem. Ainda assim, com esse senão do
desfecho, O Guardião mantém seu enigma.
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