in loco - coberturas dos festivais
Eles Voltam, de Marcelo Lordello
por Fábio Andrade

A margem compartilhada

O longo prólogo de Eles Voltam remonta instantaneamente uma impressão que já ficava no ar com N. 27 e Vigias, filmes anteriores de Marcelo Lordello: na novíssima geração de cineastas brasileiros, ele é provavelmente quem melhor domina as possibilidades expressivas do trabalho de dramaturgia no cinema. Essa compreensão passa pela clareza de Ítalo Calvino em suas "Seis Propostas para o Próximo Milênio": "A partir do momento em que um objeto comparece numa descrição, podemos dizer que ele se carrega de uma força especial, torna-se como o pólo de um campo magnético, o nó de uma rede de correlações invisíveis. O simbolismo de um objeto pode ser mais ou menos visível, mas existe sempre. Podemos dizer que numa narrativa um objeto é sempre um objeto mágico".

Um casal de irmãos é deixado pelos pais na beira de uma estrada no meio do “nada”. A expressão em seus rostos e uma discussão sobre um aparelho celular já quase sem bateria dá a entender que foram abandonados ali como uma forma de castigo, mas pouco mais é dito ou mostrado. Não é necessário. Como os garotos, imaginamos que os pais logo voltarão para buscá-los - mas o tempo passa e nada acontece. Neste primeiro momento, Eles Voltam se firma como um exímio exercício de rarefação e dilatação do tempo, como se a passagem de cada segundo fosse o próprio tema do filme. Se não é possível pensar em dilatação do tempo no cinema sem pensar em Alfred Hitchcock, já temos uma clara visão do potencial destoante do cinema de Lordello na produção atual. A imobilidade dos dois jovens é contrastada a pequenos rasgos de movimento que trazem o interior à superfície: os carros que cortam a estrada, um garoto que passa de bicicleta, uma música compartilhada em um mesmo par de fones de ouvido. Até que o garoto se enche de ficar parado e decide procurar um posto de gasolina onde possa pedir ajuda. Cris (Maria Luiza Tavares) fica por ali, sozinha... só a câmera fica com ela.

Apesar de todo o envolvimento gerado pelo prólogo, não é preciso muito esforço para imaginarmos a dificuldade em se fazer um longa-metragem à margem do movimento. O mesmo garoto de bicicleta retorna.“O posto mais perto é longe daqui”. Ele incita Cris a se mover. Eles Voltam se torna uma espécie de novela picaresca, um road movie sem carro, em que os encontros e descobertas de uma improvável heroína configuram uma jornada de engrandecimento – e o fato de recorrermos a estrutura tão antiga da literatura só reforça o quanto Marcelo Lordello se preocupa sobretudo com a escritura da dramaturgia, articulando texto, atores e câmera como uma mesma unidade que produz e redistribui sentidos. Mas, uma vez em movimento, Eles Voltam raramente alcançará de novo a força de seus primeiros minutos.

Há uma beleza intrínseca no gesto espontâneo de criação que marca esta geração pós-vídeo digital do cinema brasileiro. Parte do valor dos melhores desses filmes vem da capacidade de se adaptar e usufruir dos limites da precariedade. Só que o desejo de dramaturgia se ancora em uma impressão de realidade interna à cena que a falta de recursos (de diversas ordens) inevitavelmente compromete. As acentuadas mudanças de luz entre um plano próximo e um plano geral, por exemplo, como na sequência noturna da praia, quebram a continuidade da sensação de localização no tempo e no espaço de maneira irrecuperável – mais ainda em um filme que em parte tematiza o próprio tempo a passar. Se, por um lado, o diretor tem um domínio bastante claro na construção de sentidos com a câmera e a montagem, por outro há uma dificuldade com esses mesmos elementos em se adequar aos limites do possível – que resulta, inclusive, no trabalho mais irregular do fotógrafo Ivo Lopes Araújo nos últimos anos. Mais do que suscitar um mau discurso do bom acabamento, as limitações concretas de Eles Voltam importam por serem empecilhos na imersão no filme, precisamente por o talento do diretor depender de certa transparência para que seus efeitos sejam alcançados.

Toda a relação de Cris com o mundo se dá por gestos de notável sutileza, de pequenas ações que dizem muito mais do que as palavras e que parecem exaustivamente trabalhadas pelo diretor até não carregarem os rastros desse trabalho. O filme depende vitalmente dessa proximidade, e quando consegue construí-la - em especial nos momentos em que Cris se vê na casa de outra pessoa, seja no acampamento sem terra, na casa da faxineira que vê novela com as filhas, ou no quarto de Geórgia - chega a momentos bastante impressionantes. Porém, quando diante do desviante, daquele que não é merecedor de nossa simpatia (nem da do filme), salta a evidência do trabalho de tudo aquilo que prefigura um filme de dramaturgia: um texto, um discurso, uma intenção clara na colocação de cada elemento em cena para gerar determinados sentidos. Há algo de sintomático no fracasso em se “apagar” nos momentos em que o diretor traz a questão de classes para o filme. Mas, mais do que demandar omissão, é notável uma dificuldade em encontrar os recursos mais potentes artisticamente, os tais “objetos mágicos” para que essa relação seja também crível na diegese, e não uma intromissão, uma declaração muito ironicamente colonialista do diretor no universo interno ao filme.

A potência mágica da escrita que se apagou é algo que se anuncia com a separação entre os irmãos no começo do filme e que ganha pesos fortemente simbólicos no avançar do tempo. Pois Eles Voltam está muito mais para História Real, de David Lynch, do que para Estrada para Ythaca, dos irmãos Pretti e dos primos Parente. Ao contrário de Alvin Straight, que sai de casa com um cortador de grama e uma missão, em Eles Voltam somos abandonados à beira da estrada como castigo ou acidente. O chamado à ação é casual, mas há um acerto de contas a ser feito, um encontro inevitável com seus pares ao fim da viagem que o filme nunca tira de seu horizonte. No meio do caminho, há no máximo a possibilidade de descobrir alguém mais que viajou, que viu o mundo de uma outra forma e que, por isso mesmo, nos acena de uma outra margem. Eles Voltam reganha força quando seus encontros são tratados como encontros de fato, pois é com eles que Cris também ganha força e progressivamente perde roupas, se desnudando até poder abandonar seu corpo na flutuação do mar que o filme muito responsavelmente tratará de interromper, devolvendo-a ao mundo concreto, ao reencontro, ao acerto de contas com os laços rompidos que dão peso a este luto que o cinema brasileiro contemporâneo se esforça por carregar.

Apóis encontrar seu lugar em uma casa de veraneio vazia, Cris caminha pela praia até um hotel para gringos abandonado, filmado com a tranquilidade pós-apocalíptica do melhor Fassbinder (o celeiro de A Encruzilhada das Bestas Humanas, o prédio abandonado de Num Ano de 13 Luas). É inevitável pensar nos fracassados projetos de classicismo no cinema brasileiro, diante daquele hotel em ruínas que, embora feito pensando nas demandas exteriores, ainda permitia uma bela vista. O cinema de Lordello se comunica de certa forma com as ruínas desse projeto, tentando retirar dali ao menos a estrutura que permite dar a ver, a janela de tijolos decompostos com vista para o mar. Se há possibilidade de cinema à beira da estrada, é porque o cinema brasileiro – em épocas de Cinema Novo e Caravana Farkas – já buscou o outro como missão, reduziu esse outro na descoberta de um Brasil que já havia sido descoberto, e hoje esbarra na sensibilidade alheia apenas acidentalmente. Eles Voltam é um filme sobre o abandono, pois nossos avós encaretaram (e nisso a dificuldade de Lordello em lidar com essa esfera do filme ganha um curioso tom metalinguístico involuntário), nossos vizinhos de veraneio se entregaram a um hedonismo letárgico e nossos pais sumiram, capotados em um acidente de carro que a televisão mostra espremido no canto do quadro, justamente quando ninguém está ali para assistir. O que resta é um reencontro com o irmão – sempre à beira, sempre à margem, desta vez de um quarto de hospital –, uma imagem em movimento a ser compartilhada como uma canção em um único par de fones de ouvido, e a disposição de se colocar em vigília ao lado dos corpos debilitados de nossos pais.

Setembro/Dezembro de 2012

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