Em Segredo (Grbavica),
de Jasmila Zbanic (Bósnia-Hergovina, 2006)
por Cléber Eduardo

Sob a suspeita dos prêmios

Assistir a ganhadores de festivais de ponta estimula interesses complementares. O primeiro nasce na própria sessão: confrontar o nosso juízo com os dos júris, de modo a lidarmos com critérios diferentes de avaliação. O outro possível interesse é tentar entender, para além do juízo de valor, quais são as características premiadas, pois, dessa forma, saberemos qual foi a política da escolha – ou a escolha política. A possibilidade de lidar com essas duas linhas de interesse é encontrada nas imagens de Em Segredo, da bósnia Jasmila Sbanick, que poderia ser definido como um drama sobre uma mulher marcada pela guerra e sobre um lugar machucado por suas fissuras. Ganhador do festival de Berlim, o filme, por sua temática e por sua premiação, desperta a dúvida: foi selecionado como o mais importante do festival por suas características estéticas ou por tratar de uma questão com alto apelo humanitário? Pelos dois, certamente.

Honraria canônica, se é para entrar no jogo das eleições, parece um excesso. Quase um delírio, com todo o respeito. Mas seria deslealdade não reconhecer alguma força na construção das cenas, no respeito pelos atores, na composição de fragmentos de todo uma região por meio da experiência individual de uma protagonista. Não é apenas uma narrativa esquemática, com significados saltitantes, clamando para serem notados. Em Segredo tem momentos nos quais se vê seres de verdade na tela. Mesmo estando com a intenção de extrair um sentido de conjunto dessas experiências singulares, essa capacidade de criar dramaturgia em cima de uma conjuntura real – os efeitos da guerra na Bósnia – talvez seja o melhor do filme e razão de sua premiação.

O plano inicial é construído de forma a salientar a composição dos corpos femininos no espaço, valorizando a imagem de um grupo de mulheres em ritual compartilhado, filmado com um movimento de câmera lateral com peso dramático similar aos que tipicamente usa Amos Gitai. Há, nessa primeira imagem, a presença da mulher como conjunto de seres – para, somente depois da introdução, eleger uma única mulher para representar todas. Há também alguns sinais de uma tentativa da diretora filiar seu filme à uma certa categoria de cinema, eloqüente em sua sobriedade, mas com um desejo de retenção de espaços, de instantes, de uma angústia nem sempre declarada em palavras.

A mulher eleita para representar todas é Esma, dona de temperamento oscilante, que promove choques e anti-clímax na convivência com a filha adolescente, traz as marcas de algum trauma, reage a uma fissura do passado. Há uma preocupação em situar as situações em seus ambientes, porque, inegavelmente, Jasmila vincula o drama de sua personagem a seu lugar, às características da região onde vive no século XXI. Deseja ser um testemunho dramatúrgico de seu tempo e de sua sociedade, procurando ficcionalizar uma situação conectada ao drama de um povo.

Em matéria de representação, isso implica selecionar, para criar seu mundo na tela, momentos “significativos”, que revelem algo do contexto no qual o filme está instalado.  De qualquer forma, esses momentos, do ponto de vista dramático, não são intensos, até porque, antes de tudo, a questão central é psicológica. Não se trata de filme de luto. Vemos aqui uma afirmação de resistência, de emancipação da memória e do ressentimento, com abertura para momentos intensos em alegria. Embora não seja meu hábito destacar isoladamente o trabalho de atores, seria desonesto não reconhecer a energia cênica e simples das atrizes principais, na difícil configuração dramática de “mãe traumatizada e filha adolescente-rebelde”. Talvez seja a habilidade da direção em encontrar vida em seus esquemas dramatúrgicos a razão de o filme não ser reduzido apenas a uma plataforma de situações destinadas a provocar compaixão em nós espectadores.

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