ensaio
Possuídos: Produto do autor, produto do seu tempo
por Cléber Eduardo

Possuídos é o filme da foto principal desta quinzena na Cinética. A escolha pela foto é uma forma de destacar sua importância nesse momento do cinema. Um dos raros filmes elogiados com convicção esse ano em Cinética, ao menos dentro os lançados em circuito, Possuídos foi sapecado nas salas de exibição e tratado como subproduto de gênero. Nossa foto é uma tomada de partido contra a transformação do filme em subproduto sem assinatura e só vinculado de forma torta à uma corrente de gênero. 

Esta escolha é pautada por uma idéia de cinema, vinculada à imaginação visual do diretor dentro de determinados códigos e à margem deles; e a uma idéia de crítica, que vê os filmes em seu contexto histórico, não como formas suspensas no mundo. O principal contexto, no caso, é o de William Friedkin. Portanto, essa idéia de uma crítica, inevitalmente, passa pelo autor. Cineasta com vaga garantida no clube de muitos críticos por seus filmes dos anos 70 e 80, com Operação França e O Exorcista, com Parceiros da Noite e Viver e Morrer em Los Angeles, esse arquiteto de formas e cenas tornou-se pedreiro de imagens para o capitalismo cinematográfico. Nosso destaque é uma forma de constatar que, com os recentes Caçado e Possúidos, Friedkin revela ser um sobrevivente nos EUA. Mostra vitalidade aos 40 anos de carreira, com mais de 60 de idade, ativo após as mudanças de paradigmas e de funcionamento dos estúdios que, se podem ter pautado seu percurso e seus limites, não o impediram de agir pelas beiradas nesses dois filmes mais recentes

Algumas de suas questões dos 70, retomada nos anos 80, retornam em Caçado e Possuídos: a perda de controle ou a presença do controle especialmente. Tudo está ali naquela foto alaranjada. Quando me refiro à importância de Possuídos no cinema contemporâneo, é preciso relativizar essa suposta eleição, pois, acima de tudo, ela diz mais respeito a 2007, marcado pela anemia nos lançamentos, e menos aos valores estéticos do próprio filme. Se o mesmo Friedkin fez a diferença nos anos 70, entrando em superfícies pouco pisoteadas no thriller de ação em Operação França e no terror sobrenatural em O Exorcista, não teria como afirmar que o diretor avança em algo com Possuídos, em relação ao cinema de sua atualidade, e, em certo sentido, arrisca menos em sua proposta que alguns cineastas atuantes no mesmo terreno.

Bazin afirma, em Da Política dos Autores (publicado em Cahiers du Cinéma, número 70, 1957), que a inspiração dos autores não envelhece, mas pode não se adaptar ao processo histórico. Friedkin talvez tenha vivido isso em Hollywood. Se François Truffaut e Eric Rohmer gostavam de citar Giradoux nos tempos dos Cahiers dos Cinema dos anos 50, afirmando a precedência dos autores em relação aos filmes, Olivier Assayas nos Cahiers dos anos 80, embora confirmando essa ordem (autor-filme), corrigia a ausência de contextos: antes do autor, há o tempo histórico. Pois é pela relação entre Possuídos e seu tempo histórico, entre Friedkin e seu momento de cinema, que a foto alaranjada atende a uma idéia de cinema e de crítica. Isso não significa adesão completa a Possuídos, mas o reconhecimento de que, em sua atualidade, o diretor se distingue, mesmo sem estar à frente.

O título, o filme, os corpos

Apesar das constantes reclamações do título oportunista, forçando uma relação com O Exorcista e levando o consumidor a esperar uma história de reencarnação ou incorporação, Possuídos é um título no mínimo bem interessante para as situações de Bug, e condizente com uma idéia de posse sobre corpos e individualidades no universo de Friedkin. Não há nenhuma loucura em aproximar o filme de O Exorcista, tampouco de Parceiros da Noite, ambos também em torno de contaminações e posses incontroláveis do corpo. 

Friedkin deu aos invasores dos corpos a potência do sobrenaturalismo em O Exorcista e a aflição psicofísica de uma paranóia epidérmica em Possuídos. Nos dois casos, teme-se o controle. Era um controle de espíritos em 1973. É de sensores instalados pelo Estado, em, forma de insetos, o medo dos personagens de 2007. Os personagens acham-se vítimas de uma conspiração de CIA e Exército, de uma manipulação de seus corpos para fins científicos, acham-se vulneráveis aos desejos sem limites do Estado. Se como afirma Benedict Anderson a nação é uma comunidade imaginada, sustentada pelas narrativas de pertencimento e de aglutinação das diferenças, os “Estados” Unidos de Possuídos é produzido pelo imaginário da suspeita, por narrativas calcadas na desconfiança em relação ao Estado.

Até onde ela é real? Até onde herda a memória de outros momentos históricos e das narrativas da desconfiança nacional? Até onde é a evidência da piração dos personagens? Até onde a piração está neles ou é produto do mundo? O cinema americano foi bastante habitado, nos últimos 30 anos, por personagens com colapsos de percepção, com descolamento da relação entre as experiências e seus sentidos, com a capacidade de entendimento alterada. Possuídos tanto se integra às narrativas de desconfiança nacional quanto as problematiza com sua filiação às narrativas de desconfiança do real.

Não à toa Peter se apresenta, em espécie de cartão de visitas verbal, como o que vê além do visível. Se há algo invisível para ser visto, e esse invisível está lá por vontade e não por acaso ou acidente, então o visível não é garantia de toda a existência. Algo é escondido de nós no mundo das aparências. Friedkin parece colocar, porém, fronteiras claras. Só há o visível, mesmo em crise. Vê a lógica dos personagens, mas não rompe com a lógica do mundo, estabelecendo qual o seu lugar e qual o dos personagens – ao contrário de um David Lynch, por exemplo, que promove o curto-circuito das senhas. 

Friedkin é menos inventor de um mecanismo de ruptura com a lógica de entendimento e mais um manipulador de determinados códigos culturais relacionados à desconfiança das evidências (e à produção delas). Parece haver um mistério em alguns planos e objetos, aparentemente pensados para gerar em nós uma suspeita sobre aquela imagem. Parece haver algo de maldito naquele quarto que se insinua em algumas passagens de planos. O sexo vira mau presságio. Os mistérios estão ainda em outras operações. Há uma variedade de aproximações da câmera em direção aos atores e dois planos aéreos com câmera aparentemente subjetiva de um helicóptero – bastante interessante enquanto problematização do “olho do filme”. De quem é o olhar do helicóptero que depois é ouvido pelos personagens? O helicóptero é imaginário? Ou está lá?

As aproximações da câmera na direção dos atores parecem ser o caminhar da subjetiva de um ser invisível, como se o próprio filme, ali na imagem, fosse esse elemento externo internalizado pelos personagens, como se a câmera os patrulhassem sem eles saberem, como se essa câmera fosse o olhar de um sistema de vigilância, mas com a mobilidade de uma câmera amiga do casal. Friedkin joga com essa dúvida: qual é a dessa câmera? E isso nos permite tentar encontrar a razão dela estar lá, inseminando em nossa percepção a paranóia vivida na tela. Por que? Como? E aquela pizza?

No entanto, se há uma expressividade visual em Possuídos, e também uma carnalidade perturbadora (com especial destaque para a insuportável seqüência de auto-extração dos dentes), também se nota nas atuações intensas, na ausência de silêncios e no investimento no plano-seqüência tagarela, uma atitude performática que, com ou sem essa intenção, exibe uma consciência da encenação da parte do filme. Em vez da força da experiência mostrada, vê-se também, ou às vezes principalmente, a força da encenação da experiência. O desenho de som, simples em sua inteligência para construir uma atmosfera mental, acentua a construção. Vemos um filme, não experiências. Ou experiências de filmes. Friedkin parece estar sempre com um pé fora.

A paranóia ganha ares, nesse sentido, de laboratório cênico. Como a evidência é motivo e desconfiança dos personagens, deixa-se um rastro da construção dessa evidência, buscando-se tanto o efeito da imagem quanto sua constituição. Contribui bastante para isso a verborragia dos personagens, característica provavelmente motivada pelo respeito à dramaturgia da peça de Tracy Lets, também responsável pelo roteiro do filme. Há um respeito pela mediação pelas palavras. Se Friedkin consegue fazer mais que somente atender o autor da peça é porque tem considerável imaginação visual e encontra soluções na imagem, com a luz, com as tomadas, com a duração dos planos e com a cenografia, para expressar os personagens – ou seja, para exteriorizar em opções estéticas a internalização da crise do casal.

Há força nisso, sim. Mas essa força eventualmente parece disposta demais a transformar a condensação do espaço em uma questão conceitual para a encenação e empenhada em excesso em relacionar esse casulo de beira de estrada com a crescente auto-centralidade dos personagens, que transformam o quarto de motel em mix de laboratório e bunker como forma de visualizarmos suas próprias mentes. O Friedkin de 2007 é consciente demais de sua operação, de seu diferencial, de sua atitude, de sua autoralidade relegada a qualquer nota. Não lhe basta mais fazer cinema, mas assumir esse cinema como bandeira, como confinamento em um quarto onde ninguém entra, como um campo de batalha mental e físico, que, em nome das convicções (imaginárias que sejam), coloca o próprio corpo em risco. Mais risco dos personagens e dos atores, porém, que da matéria concreta do cinema. 

Setembro de 2007

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