olho no olho - virtual
Arte do encontro e da transformação
Seis perguntas para Miguel Gomes
por Felipe Bragança

Descoberto no Festival de Cannes de 2008, Aquele Querido Mês de Agosto pode ser considerado sem medo a grande surpresa do ano entre os filmes que foram vistos no Festival do Rio e Mostra de SP do ano passado. Não só por apresentar ao espectador brasileiro Miguel Gomes (que vemos na foto ao lado, à esquerda, como personagem do próprio filme), um novo nome de cineasta a ser seguido de perto, mas principalmente pela forma mesmo como articula sua linguagem e narrativa (algo que já foi bem destacado aqui na Cinética). Enquanto esperamos ansiosamente que o filme seja lançado em circuito no Brasil (algo que foi anunciado para abril próximo, a ver), Felipe Bragança mandou por email suas já tradicionais seis perguntas para o diretor (num formato já usado anteriormente para falarmos com Naomi Kawase, Jia Zhang-ke, Apichatpong Weerasethakul). A seguir, as respostas. (Eduardo Valente)

1 - Há um pulso juvenil/adolescente (?) nas personagens e na forma como teus olhos e tua equipe procuraram o filme – um certo sentido de aguda inocência, humor febril e paixão pura com as coisas e na forma de olhá-las como fabulação.  Queria que falasses dessa construção, para além da presença das personagens adolescentes na camada dramatizada do filme.

Sinceramente, não sei se a adolescência tem alguma coisa a ver com o modo como o filme foi feito. Acho que o motor do filme é o encontro de dois desejos de cinema. Eu e a equipa tínhamos um desejo de partir da realidade para aquilo que tu chamas de fabulação; e as pessoas da região tinham um desejo de entrar num filme. Até aqui podes me dizer que isso é o que se passa em qualquer filme. Mas nós decidimos arranjar uma maneira de transpor esse encontro de desejos para o centro do filme, tornar isso visível. Talvez mais do que adolescente seja até infantil este jogo que todos fazíamos a pretexto de fazer um filme: todos éramos nós próprios mas também personagens de cinema. É preciso acrescentar que esta região, a Beira, durante o mês de férias em Agosto tem um ambiente muito peculiar. Os emigrantes regressam às aldeias e vivem num Portugal um pouco irreal e sublimado. Há festas e canções em todo o lado, coisas que não fazem parte da realidade dos outros meses do ano. Portanto, a própria realidade naquele lugar tende para a fabulação. Nós chegávamos com a câmara e havia belly dancers numa aldeia onde habitualmente vivem menos de 100 pessoas... É o chamado espírito do lugar e às vezes não tínhamos que fazer grande coisa para que a própria realidade se convertesse em algo mais onírico.

2 - Queria que contasse como foi o processo criativo junto aos atores e não-atores, a forma como trabalhou os textos com eles, os improvisos e as falas escritas. Há uma alegria nesse processo, me parece, que transpira no filme.

Todos são não-actores. Uns têm uma ligação com aquela região e os outros com o cinema (mas só como técnicos). Como o filme se foi tornando num encontro entre as pessoas da terra e as do cinema, achei que tínhamos a obrigação moral de entrarmos todos no filme, para estarmos em pé de igualdade. Afinal, nós estavamos a invadir um território e a pedir às pessoas que faziam parte dele para fazerem personagens que tínhamos imaginado. O Joaquim Carvalho, que surge primeiro como meu director de produção e depois como o pai de Tânia, foi exactamente isso durante o filme: primeiro produtor, depois actor. Trabalhei alguns meses antes com o par de adolescentes que protagonizam o filme, com ensaios de texto. Com o Joaquim não trabalhei nada antes, queria que ele estivesse um pouco perdido. Na prática, o trabalho com cada actor tinha a ver com aquilo que queríamos tirar de cada um, que era sempre diferente. Para uns queríamos deixar mais à vista o actor, para outros tínhamos que trabalhar um pouco mais para que pudesse surgir a personagem. Era um jogo de escondidas entre as pessoas e as suas personagens.

3 - Tem me interessado bastante as possibilidades das sobreposições e fusões de imagens como carga expressiva de intensidades em encontro e queria que comentasses sobre um dos usos mais lindos desse recursos já visto no cinema que é o momento em que passamos do documental ao dramatizado, no encontro dos personagens com seus fantasmas ficcionais. Como chegou-se a esta pérola – aproveitando para falar do processo e parceria com teu montador?

Nós tentámos que o filme ele próprio fosse já de si uma sobreposição. Um filme onde as pessoas se transformam em personagens de cinema, os sítios em décores e os rituais locais em matérias para o roteiro. Sem nunca deixarem de ser aquilo que eram, ou seja, eles próprias. Na cena de que falas filmámos realmente o primeiro encontro do Fábio e da Sónia. Eles não se conheciam mas nós já sabíamos que eles iam ser os protagonistas. Na montagem decidimos sobrepor um dos travellings dos “binóculos” para os fazer levitar um pouco e marcar, como tu bem notaste, o suposto momento em que concluímos o casting. A sobreposição é uma técnica artificial e eu também queria mostrar o artifício que era transformá-los em personagens. O trabalho com o montador e com a minha co-roteirista passou a fazer parte do mesmo sistema. Eu e o montador chamávamos a roteirista para a montagem e, ao invés, chamávamos o montador para a reescrita do roteiro. Tentávamos arranjar uma série de rimas entre tudo. Montagem e roteiro já não eram fases distintas.

4 - Queria que contassem os filmes contemporâneos portugueses que te interessaram nos últimos anos (curtas e longas), e me falasse um mínimo da figura de João César Monteiro como aparente inspiração para seu humor ácido e uma certa picardia.

O João César Monteiro foi importante para mim. Vi Recordações da Casa Amarela quando tinha uns 16 anos e percebi que se podia fazer filmes com aquela liberdade no meu país. Isso marcou-me. Nos últimos anos interessa-me sobretudo o cinema do Pedro Costa. Há outro realizador da mesma geração do Pedro que teve vários problemas para acabar filmes e nunca passou verdadeiramente a fronteira portuguesa: Manuel Mozos. É mais clássico formalmente, mas inventou algumas das personagens mais comoventes que encontrei no cinema dos últimos anos. Há outro realizador que termina agora a sua segunda curta e prepara uma longa, João Nicolau. Foi meu montador nalguns filmes e a sua primeira curta-metragem, Rapace, é um grande filme.

5 - Vi uma declaração tua em que comentavas os discursos atuais de que o cinema anda meio à deriva e se acabando, com esta frase: O cinema está indo onde cada realizador o levar.  Então, te provoco: para onde pensas que estás levando o cinema contigo?

Quando digo isso estou a tentar explicar que cada filme é sempre algo individual, feito por pessoas singulares com vontades próprias. Não acredito em manifestos nem em movimentos com regras pré-definidas. É claro que o cinema não pode ser indiferente ao seu tempo e ao mundo; portanto haverão filmes num determinado momento com ideias e preocupações comuns. Eu não levo o cinema para lado nenhum. Tento que cada filme seja emocionalmente, esteticamente, narrativamente justo relativamente à sua proposta geral, a mim e às outras pessoas envolvidas.

6 - Vi A Cara que Mereces (primeiro longa de Gomes, inédito no Brasil) em Santa Maria da Feira em 2005 e me parecia um filme que encantava pela entrega e fabulação exacerbada mas que também distanciava pelo acúmulo desse dispositivo ao longo da projeção. Já em Aquele Querido Mês de Agosto, a sua veia de fabulista de forma docemente perspicaz se junta a um sentido aguçado de observação que convida o espectador a um mergulho delicioso e interminável. Queria que comentasses essa transição ou diferença de partidos, se é que há, entre os dois filmes, tendo em vista o que estás preparando para os próximos filmes.

Eu fui crítico de cinema e já me deixei disso. Não quero analisar os meus próprios filmes, isso agora é com eles... À primeira vista são filmes diferentes porque o modelo de produção de cada um foi também diferente. Mas talvez tenham várias coisas em comum. Eu não considero que A Cara que Mereces seja inferior a Aquele Querido Mês de Agosto mas a minha opinião vale tanto como outra qualquer. O próximo filme que fizer será provavelmente parecido com os que já fiz e distante deles. Não tenho uma agenda ou um programa a cumprir mas também não tenho outra maneira senão ser fiel aquilo de que gosto e que me interessa. O título deste próximo filme deve ser Aurora mas acho que não devo acrescentar grande coisa porque, apesar de já ter chegado a uma primeira versão do roteiro, tudo pode mudar com o tempo.

Janeiro de 2009

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