A
Era da Inocência (L'Age des Tenèbres), de Denys Arcand (Canadá,
2007) por
Francis Vogner dos Reis Manifesto
do delírio masoquista
Triste paradoxo: os filmes
de Denys Arcand existem para simplesmente declarar sua inutilidade e impotência.
Pessimismo crítico e derrotismo elegante? Afinal de contas, Arcand gosta de emitir
diagnósticos sobre a decadência intelectual e a afasia política do mundo contemporâneo.
Mas, sem crítica (é unilateral demais para ser crítico), e sem elegância (é em
tudo, grotesco), ficam só o pessimismo e o derrotismo. Vejamos:
Um homem mal casado/mal amado, que não fode ninguém, insatisfeito com a esposa
(uma autista e patética workaholic). Um pai de família mal quisto – as
filhas não vivem, mas funcionam de acordo com seus ipods, video-games
e celulares. Um funcionário público padrão – de acordo com o clichê mais recorrente,
é comodamente legalista, mau colega, estúpido com o público que atende e detesta
sua função. Lá pelas tantas ele declara que já participou de protestos, passeatas,
grupos de teatro e “veja só minha vida, que droga hoje”. Mais do mesmo – o universo
pós-ideológico de Denys Arcand, das instituições falidas, da alienação voluntária
e consentida do welfare state. O protagonista é frustrado
e não consegue compreender como o entusiasmo de ontem deu lugar à desilusão de
hoje. Se Nietzsche dizia que “o ressentimento é como é um olho ruim”, não é difícil
de entender porque os filmes de Arcand – e A Era da Inocência de modo específico
– têm uma dinâmica caolha: se compreende tudo a partir do sentimento de mundo
do protagonista, sem colocar essa perspectiva em crise: há somente uma constatação
do vazio de sua vida, onde não se questiona o “estado das coisas” (que consistiria
em um esforço de ver e entender como elas estão organizadas), mas se afirma somente
a inércia delas. O
diretor mais uma vez se aplica a discorrer sobre seus princípios, só que agora
pretende rir deles. Uma comédia? Sim, uma mudança em sua obra que equivale a trocar
seis por meia dúzia – em outras palavras, rir pra não chorar. A cada aparição
do protagonista interpretado por Marc Lebréche – seja em casa, no trabalho ou
com a mãe doente no hospital – o diretor se esforça para esgotar um parecer sobre
sua condição, porque cada movimento será frustrado, cada passo será em falso.
Diferente de um bom filme de gênero que necessariamente parte do clichê para atingir
algo original, em A Era da Inocência o clichê está dado, se parte dele,
se continua nele e se chega a ele. É a dramaturgia do beco sem saída, porque nada
se tem a fazer: todos seus dispositivos dramáticos estão voltados a construir
um universo chapado, sem relevo, onde cada etapa, cada cena, é uma afirmação categórica
de seu próprio esgotamento, de sua total ausência de propósito. Estamos
no pior dos mundos e o jargão de que “o cinema não propõe soluções, só identifica
problemas” é lavado ao paroxismo de tal modo que toda a trajetória do protagonista
revelará que os problemas sempre serão sentenças (um fim), nunca serão questões
(portanto passíveis de desdobramento, reação). Assim, o protagonista é impotente
perante a decadência das convenções, as fantasias de sucesso são um anestésico
ao insuportável de seu cotidiano no subúrbio. É tão invisível para a família que
chega-se mesmo a pensar se ele não é um fantasma desavisado, um Bruce Willis em
O Sexto Sentido. Hipótese descartada mais à frente, até porque Arcand não
é simpático à imaginação, e como se vê em A Era da Inocência essa descrença
é um tanto crônica. A falta de imaginação é tema – e problema – central, assim
como seus principais filmes como Jesus de Montreal (ficção, um delírio
estéril) e a dobradinha A Queda do Império Americano e Invasões Bárbaras
(o “fim da História” como a ausência de qualquer vitalidade artística e de qualquer
horizonte de ação política). As
próprias fantasias do personagem com mulheres, sucesso e grande oferta de sexo
passam a ser com o tempo não uma negação de sua realidade, nem uma alternativa,
muito menos uma visão crítica dela, mas um espelho de sua miséria. Até mesmo o
encontro medieval, no qual vai com uma garota, é ridicularizado como um simulacro
excêntrico da vida (e o resgate de algumas coisas, como “fé e ordem”, segundo
um dos personagens da encenação medieval), cheio de regras e de hierarquia. Ou
seja, cada projeção do desejo, cada pacto de convivialidade é um jogo de cartas
marcadas, porque no fundo tudo é a mesma coisa, tudo converge para o tédio. Os
sentimentos de tédio, de fracasso e o pessimismo foram determinantes em muitos
grandes filmes, como os de Fassbinder por exemplo, que nos deram a ver essas questões
em movimento, como elementos ativos, sem medo da dúvida e da postura mais enérgica
de alguns cineastas. Mas tudo isso em A Era da Inocência é monolítico,
determinista, morto. Apesar da gradual mudança da trama, o filme termina como
começa, mórbido e masoquista. É a fruição do tédio. Insuportável. Março
de 2008 editoria@revistacinetica.com.br
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