O Escafandro e a Borboleta (Le scaphandre et le papillon),
de Julian Schnabel (França, 2007)
por Fabio Diaz Camarneiro

Metamorfose pela comunicação

Após um acidente vascular cerebral, Jean-Dominique Bauby perdeu todos os movimentos do corpo, mas seu cérebro continuou funcionando perfeitamente. Na verdade, um movimento restou a Bauby: ele era capaz de mover uma pálpebra, e essa se tornou sua única forma de comunicação com o mundo exterior. Foi assim, piscadela atrás de piscadela, que Bauby pôde escrever um livro, escolhendo letra por letra a partir de um alfabeto. O grande risco em adaptar essa história para o cinema é cair num melodrama barato, novelesco, daqueles sob medida para que o público chore copiosamente. Julian Schnabel resolveu escapar dessa armadilha da maneira mais interessante: realizar um pequeno experimento de linguagem, um filme em primeira pessoa.

As primeiras cenas de O Escafandro e a Borboleta transcorrem a partir do ponto de vista de Bauby acordando do coma, logo depois do acidente. O recurso da câmera subjetiva, que poderia se transformar em mera afetação, termina por aproximar narração e personagem. Não se trata apenas de simular o ponto de vista ótico de Bauby, mas de colocar a câmera em uma condição espacial semelhante à do personagem: uma câmera aprisionada, que observa a partir do “escafandro” – apelido carinhoso de Bauby para o seu cárcere particular. Schnabel brinca com essa idéia do escafandro como cárcere ao escolher “La mer”, a clássica canção de Charles Trenet, para os créditos de abertura, sobre imagens de radiografias e instrumentos cirúrgicos.

O uso da primeira pessoa convida também a um olhar “interior”: passamos a perceber nosso próprio olhar a partir das limitações do olhar de Bauby. Após alguns minutos, é como se começássemos também a perceber nossa respiração, nossos movimentos musculares, a posição em que nossos membros se amontoam, sentados na sala de cinema. Observar Bauby nos convida a atentar ao nosso próprio corpo, essa “dulcíssima prisão”. Mas o corpo de Bauby (e a narração estritamente em primeira pessoa) é apenas um ponto de partida. Quando o personagem descobre uma maneira de se comunicar com o mundo, o filme começa a se aventurar na memória e na imaginação de Bauby. Temos momentos anteriores ao acidente, sua relação com o pai e com a ex-mulher e os filhos, e também arroubos de fantasia.

Aprisionamento e imaginação. Logo fica claro como O Escafandro e a Borboleta equilibra seus elementos principais. O jogo de oposições começa pelo título: um objeto pesado, de pouca mobilidade, feito para afundar no oceano, e um animal leve, que flutua ao vento. O filme se alimenta dessas oposições, que se aproximam e se complementam: corpo e imaginação, realidade e lirismo. É por atrelar a narrativa ao corpo de seu personagem que Schnabel consegue explorar com tanta intensidade os arroubos de imaginação de Bauby. A imaginação, aqui, nasce necessariamente de algo concreto.

Max von Sydow, que interpreta o pai de Bauby, merece comentário à parte. Há majestade em von Sydow: em seu porte, em sua voz, em seu rosto. Schnabel parece perceber isso, e o único momento em que a narração “escapa” de Bauby é quando vemos pai e filho conversando ao telefone (em outras conversas telefônicas durante o filme, temos apenas o ponto de vista de Bauby, que não pode ver a imagem, mas apenas ouvir a voz de quem está do outro lado da linha). O rosto de von Sydow carrega as memórias de sua trajetória no cinema: olhar para von Sydow faz a memória cinematográfica comece a vagar entre seus trabalhos anteriores. É a mesma estrutura de todo o filme: a partir daquele rosto, a imaginação alça vôo.

Agosto de 2008

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