in loco - cobertura dos festivais
A Espada e a Rosa
(idem), de João Nicolau
(Portugal/França, 2010)
por Paulo Santos Lima
A
beleza da incerteza
Plano final belo e forte, o de A Espada e a
Rosa. E bastante significativo. Uma cena que agrega muitas
questões do imaginário português, sobretudo aquelas que são discutidas
hoje sobre uma certa tradição que ficou cristalizada nesse imaginário,
essa que interliga o sebastianismo a uma desorientação em se definir
um caminho histórico-político para a Portugal de hoje. Na imagem,
um homem (Manuel, o protagonista) segue avante para o fundo do
plano, numa paisagem natural, uma vegetação. Pelo que o filme
mostrou até aqui, intui-se que ele não parte para a errância,
para a incerteza, e sim volta para seu lar, em Lisboa, abandonando
o isolamento.
Há
mais coisas a reter, deste último plano: a principal delas, talvez,
seja o fato de ser uma cena típica de desfecho de várias obras,
com personagem seguindo a algum destino, mas sobretudo a ver com
a literatura dos grandes, a de Stevenson, H.G. Wells, John Milton,
Conrad. Um tema afinado ao imaginário dos grandes aventureiros,
e aqui entra Camões, Portugal, com sua literatura épica. O som
desta tomada é uma balada folk, “Look Up, Look Down that Lonesome
Road”. A Espada e a Rosa perpassa itens da alta cultura
portuguesa, essa que caligrafa sua identidade, mas a partir de
seu tempo, 2010, quando o país está devidamente conectado com
a tal modernidade tecnológica atual. Um país cujo cinema conta
com uma geração pretendendo renovar a discussão artística e política.
Um desses gajos é o cineasta deste longa, João Nicolau, chapa
de Miguel Gomes, filiado ao grupo da produtora O Som e a Fúria,
que, no panorama do cinema lusitano, junto aos ilustres Manoel
de Oliveira e João Pedro Rodrigues, estão na ponta. Agem por entre
o estado de coisas português – por dentro, e não a partir dele,
assinando filmes interessantíssimos. São fitas, as desses sujeitos,
que olham para o mundo, Portugal etc, suas questões presentes
e passadas, oferecendo algo a ver com o homem e seu tempo, e não
com um ideal de homem de um determinado tempo.
Em
resumo, prefere-se o coloquial ao declamado, a leveza à solenidade,
a ironia ao drama, João César Monteiro a João Botelho. Diante
disso, interessante constatar que A Espada e a Rosa encerra,
de certa maneira, velhas indagações políticas, históricas. Em
síntese, a lógica do filme, afinada com essa onda, não é mais
encontrar um tino político (o que, no cinema, seria a imagem política,
a boa imagem, a imagem cinematográfica por excelência) em reverência
ou alusão a uma outrora gloriosa história lusitana, com seus heróis
do mar e terra, e dos ícones Fernando Pessoa, Camões e outros
bons de pena. O lance, agora, é trespassar esses elementos para
encontrar uma encenação, uma imagem, uma dramaturgia, um olhar
(político) sobre o mundo, uma observação de encontro concreto
com as coisas, e não um devaneio poético-reflexivo. Como uma centrífuga
que tritura frutas e legumes e lhes tira um caldo, o filme vai
aos paradigmas, mas sem idolatrias. Assim, não é caso de negar,
por exemplo, Camões, mas sim dizer, em firme entonação musicada,
debochada, livre, que “mesmo que tenha imitado um italiano, Camões
é um bacano”. É tirá-los do mito e recolocá-los na esfera material,
a do processo, a de hoje, a da cultura, da formação e identidade.
Trazê-los do céu ao bar.
No
enredo, Manuel, torcedor do Benfica, homem entediado com a vida
mansa e alienada na proteção abastada na capital portuguesa, engaja-se
num amalucado projeto anti-sistema que tem como modelo a pirataria
do século 16, inclusive adotando como palco de operações uma mesma
caravela daquelas que cruzavam os mares, centenas de anos atrás.
A empreitada depende da tecnologia alemã, um tal plutex, substância
que empresta valiosas ferramentas para o grupo rebelde levar a
cabo a missão de pilhar lojas, mercados, outras embarcações, para
pegar de comidas a seres humanos. Sim, seres humanos – é aqui
que A Espada e a Rosa cria uma curva acentuada para dizer,
literalmente, que o projeto político de Manuel e seus amigos,
aparentemente irreverente, arco-íris e iluminado, é na verdade
uma impossibilidade ao nível da fabulação. E também uma selvageria,
uma violência ao nível do terror: o mentor do grupo é tanto um
talentoso pensador e artista quanto um tirano, um Dr. Moreau de
Wells.
Não
à toa, João Nicolau compõe este magnífico personagem com a utilização
de três figuras: o marcante ator Luís Miguel Cintra, o músico
José Mario Branco e o artista plástico Michael Biberstein. Os
três residindo em Portugal, de afinação política de esquerda e
cujos trabalhos fizeram uma forte marca – tal qual os autores
que aludimos ao vermos o filme, assim como toda uma idéia de consagração,
de inegável talento e marco. Daí por que chamar a entrada desse
personagem, no epílogo da história, de curva. Uma curva porque
A Espada e a Rosa segue pela “tradição”, por “uma certa
tendência” do cinema lusitano, para, contaminado com o rico húmus
desse mais restrito que seleto grupo de jovens cineastas, acaba
dando uma forte guinada para um resultado ribeirinho à ruptura,
mas bastante inusitado. É uma espécie de “bate-assopra”, pois
não rejeita as referências, a tradição, o convencional, para,
na costura amalucada (e por vezes desajeitada) de certas idéias
cinematográficas, criticar para onde se vai a partir dessas matrizes.
Sai-se da sessão com certa impressão de que o
longa é niilista, mas, Manuel retorna ao mundo – ao mundo ou ao
seu mundo. Essa é uma diferença que o filme jamais responderá.
O filme não é uma lição, um exemplo de como tem de ser um filme.
O que parece, mesmo, é que João Nicolau está desorientado, preferindo
anarquizar. Essa condição surge na forma do filme, numa franqueza
estética bastante valiosa – a comédia pipoca na mesma intensidade
que a violência (à la JLG dos anos 60), ou na mesma
condição da crítica política. A cultura popular, por exemplo,
empresta a Manuel e a um cobrador de impostos em Lisboa a abertura
para um dos mais notáveis diálogos do cinema recente, que é uma
prosa cantada em ritmo ligeiro e humor saído das rimas, ou seja,
da forma. Mais tarde, será a hoje onipresente estética das câmeras
de vigilância que apresentarão os feitos de pirataria do grupo...
pirataria em terra firme, que fique claro, pois não há mais oceanos
a serem cruzados.
Esse
desnorteio – do cineasta, de seus personagens, de uma política
cinematográfica nacional, de toda uma geração, enfim – é a força
estética deste A Espada e a Rosa, filme que alarga as
angústias, as incertezas, a confusão sobre como intervir politicamente,
mas na mesma medida que afirma um procedimento, uma acidez bastante
arguta sobre o ser humano e suas coisas, um estilo, uma forma
que não deixa de ser bastante política. Ao preferir agregar a
rejeitar, ao juntar cultura popular e erudita, diagramas clássicos
e modernos, tradições e ineditismos, A Espada e a Rosa não
deixa de fincar posição. Sem choro nem lamento, sem medo dos eternos
fantasmas portugueses, sem esse pavor do ridículo que tanto traumatiza
a identidade nacional lusitana há séculos, sem gravidade, sem
devaneios quixotescos, sem certezas construídas. Porque a afirmação
surge a partir dessas incertezas, dessa desorientação, em imagens
bastante acertadas, sólidas, apontadas, bem escolhidas. De fato,
o terreno para o qual A Espada e a Rosa aponta é o da terra,
da volta à terra firme, e não o mar das aventuras científicas,
as ilhas paradisíacas que só faziam sentido quando tinham sua
reprodução em mapas de viagem. Milton, Stevenson, Camões... esses
gajos estão na curva dos nossos tempos.
Novembro
de 2010
editoria@revistacinetica.com.br |