Eu é Um Outro - O autor e o objeto no documentário brasileiro contemporâneo

De 18 a 30 de março, a Caixa Cultural-RJ sediará a primeira mostra organizada pela Revista Cinética. A mostra exibirá 36 longas documentais realizados a partir de 2000 e terá debates com críticos, teóricos e realizadores. Confira aqui a programação completa da mostra.

A mostra

Desde os primórdios da linguagem documental no cinema, uma das principais questões que se colocam ao diretor que decide registrar um ser humano são as diferentes formas de relação que o autor pode ter com esse objeto. De Nanook – O Esquimó a Fahrenheit 11 de Setembro, muita coisa mudou, mas as implicações morais e éticas por trás da idéia do retrato da realidade de uma vida continuam sendo questionadas.

Em meio ao reconhecimento que o documentário brasileiro tem recebido nos últimos anos, pouco tem se discutido as diferentes formas com que seus diretores têm usado os limites desta proximidade e distanciamento com seus “personagens” (termo que passou a ser muito usado no documentário a partir de Eduardo Coutinho, o mais reconhecido cineasta brasileiro no formato). Esta mostra tenta discutir algumas das questões envolvidas ao se ligar uma câmera e apontá-la para alguém, fazendo isso através de destacados exemplos da produção nacional recente.

Partindo de uma totalidade de documentários exibidos pelo menos uma vez em salas de exibição, procurou-se localizar as características mais recorrentes e, entre elas, escolher as mais estimulantes e/ou representativas de facetas do documentário hoje no Brasil, sempre partindo da relação viva entre sujeito (o autor do documentário) e objeto (o seu tema/personagem). Chegou-se dessa forma a um panorama de 36 filmes, divididos em seis sessões, cada uma delas levantando questões das mais relevantes a partir da produção documental brasileira contemporânea:

As sessões

Íntimo e Pessoal: Proximidade e distanciamento talvez seja a sessão que reúna uma presença mais evidente do realizador. Todos os seis filmes escancaram a proximidade entre o seu assunto/personagem principal e aquele que realiza o filme. A sessão passa por relações familiares, de filha com pai (Person); de mulher com marido (Diário de Sintra); de indivíduo com herança genético-nacional (Um Passaporte Húngaro). Mas também exibe as relações de amizade e admiração, sejam elas prévias (Banda de Ipanema), adquiridas no processo de filmagem (Seo Chico), ou mediadas por relações de classe/trabalho (Santiago). Em todos os seis filmes, o lugar privilegiado de onde o realizador observa o seu objeto é colocado em questão, assim como as estratégias para chegar (ou não) a um possível distanciamento.

Ilustres Conhecidos e Ilustres Anônimos: a performance da singularidade exibe uma das vertentes mais habitadas pelo documentário contemporâneo. Por um lado, temos os personagens-personalidades, figuras mais do que conhecidas do espectador antes de entrar na sala de exibição (aqui representados por Oscar Niemeyer, Nelson Freire e Tom Zé); por outro, temos o personagem do Homem ordinário, mostrados sempre em seu teor extraordinário (Moacyr, Estamira, e os moradores do Edifício Master). Com exceção do filme de Eduardo Coutinho, os outros cinco exercem vertentes aparentemente opostas do documentário biográfico, sem dúvida um dos mais exercitados no mundo. De perto, veremos que uns e outros buscam a mesma idéia do personagem único e inigualável – ainda que alguns já sejam legitimados pela memória histórica, e outros estejam por ser legitimados a partir do seu saber popular ou de sua lógica particular (e peculiar).

Ontem é Hoje: memória e presentificação lida com uma questão particularmente cara ao cinema de forma geral, mas ainda mais no caso do documentário. Na necessidade de montar-se discursos sobre um passado, sejam eles de ordem biográfica (O Engenho de Zé Lins), histórica (Hércules 56) ou artístico-geográfica (Vinicius, A Mochila do Mascate), os filmes expõem visões sempre necessariamente fincadas no presente de sua realização. Cabe ao realizador lidar de formas diferentes com este “deslocamento temporal” entre tempo retratado e tempo vivido, lidando com várias decisões de uso de materiais, como os arquivos audiovisuais, ou as entrevistas em que os personagens colocam sua memória e a forma de articulá-la como assunto do próprio documentário (algo que está ainda mais fortemente explícito na estrutura de Morro da Conceição e Pretérito Perfeito).

Em Processo: variações sobre o dispositivo coloca lado a lado documentários pautados pelo imprevisto, numa proposta de realização que coloca a filmagem como matéria-prima de uma dramaturgia documental, o filme como produto de contingências sobre as quais não tem controle. A idéia que os filmes comportam é menos a de registrar uma determinada realidade anterior à sua realização, mas a de registrar a sua própria realização como uma realidade de interesse. Como diz o título da sessão, são filmes que apostam na dinâmica que surgirá a partir de seus processos e regras de realização (33, O Fim e o Princípio), na própria dinâmica incerta dos processos que documentam (Vocação do Poder), chegando à radicalização da entrega da câmera a uma outra pessoa (O Prisioneiro da Grade de Ferro). A sessão exibe também dois filmes que, aparentemente partindo de pontos de partida mais “tradicionais” (o documentário de aventura, no caso de Extremo Sul; o documentário de biografia de “ilustres anônimos”, em A Pessoa é para o que Nasce), acabam ganhando uma outra dimensão pela necessidade de incorporar e explicitar seus processos devido a fatos que se dão ao longo de suas realizações.

A Parte pelo Todo: generalizando o específico nos mostra filmes em que, partindo-se sempre do específico, monta-se (consciente ou inconscientemente pela parte do realizador) um discurso cuja leitura obrigatoriamente se expande para além das fronteiras do objeto direto do interesse dos realizadores. Assim, a partir de individualidades (Ônibus 174), instituições (PQD ou Justiça), grupos sociais (À Margem da Imagem) ou espaços regionais (2000 Nordestes, Viva São João), os filmes parecem nos obrigar a reflexões e observações que vão muito além da experiência documentada. Se o Brasil parece especialmente afeito a se pensar desta maneira a partir das expressões artísticas (basta ver a recente polêmica envolvendo o Capitão Nascimento de Tropa de Elite), estes filmes nos colocam questões relevantes sobre objetivos e discursos.

Impressão da Expressão ou Expressão da Impressão: o eu e o outro mostra filmes que procuram a aventura da descoberta – se não de realidades, situações e problemas, certamente uma descoberta de aproximações com mundos e seres. São filmes onde a maneira de ver do realizador salta aos olhos em primeiro plano, onde não há maneira de enxergar uma “realidade dada”, mas sim uma maneira de olhar para ela. Partindo de temas tão diferentes quanto o cotidiano de uma cidade (Sábado à Noite) ou figuras anônimas e seus modos de vida (Andarilho), os filmes expõem a vertente mais abertamente “cinematográfica” do documentário, onde a linguagem se sobrepõe aos temas. Não deixa de ser curioso notar que a maioria dos filmes busca a relação com fenômenos artísticos (Cartola, Rocha que Voa) ou culturais (500 Almas, Aboio), tentando criar a partir dos seus diretores um diálogo audiovisual com o universo que tentam mostrar. 

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Ao final desta programação, espera-se que o espectador possa encontrar-se menos cheio de certezas do que instigado a pensar, e acima de tudo, conhecer melhor esta produção documental, que é maior que os clichês de discurso sobre ela espalhados. Em última instância, a mostra “Eu é um Outro” levanta este retrato do hoje no documental brasileiro: como se está usando a tecnologia de nosso tempo para olhar para algo da vida e do mundo? O que se tem mostrado? De que forma? Com quais objetivos? Com quais efeitos? Descubramos então, todos juntos.

editoria@revistacinetica.com.br


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