Eu, Você e Todos Nós
(Me and You and Everyone We Know),
de Miranda July (EUA, 2005)
por Felipe Bragança
Das tripas coração
O risco é elemento crucial do caminho proposto por esta narrativa
de poesia quase histérica, quase irônica, quase melancólica –
mas, por fim, alegre. Miranda July consegue fazer uma espécie
de comédia romântica de tripas à mostra, de imagens que nos remetem
desde filmes água-com-açúcar protagonizados por Meg
Ryan a momentos de espiritualidade desesperada
dignos de um Tarkovski. Nesse encontro
dissonante de camadas, o filme consegue um painel de afetos acumulados
que demonstram uma vivacidade rara na cinematografia contemporânea.
Em seu liquidificador de metáforas visuais,
esquetes conceituais e diálogos ensaísticos,
Miranda consegue alcançar momentos de feel
good visual, sem deixar de lado
sua parcela ácida, melancólica. Num primeiro momento, seu esforço
poderia se encaixar perfeitamente dentro daquele cinismo lírico
comum a uma certa estirpe de filmes “independentes”
norte-americanos, mas a diretora consegue (junto com seus atores,
uma edição delicada e uma edição de som expressiva) diluir o cinismo
em um sentido de desilusão alegre, não recalcada.
A
sensualidade ingênua, a precariedade dos relacionamentos (sejam
familiares, sejam eróticos), a violência da solidão, a graça patética
do desejo, não aparecem no filme como dados de mera contemplação,
ou munição para um niilismo acadêmico, mas como alimento para
um roteiro que se esforça (e nisso o filme todo parece uma coleção
de espasmos) em romper sua limitações
de gênero proposto. Esse lirismo poético, acima do tom, nos lembra
algumas passagens da obra de Clarice Lispector, ou o cinema visceral
de Ana Carolina (para ficarmos em referências brasileiras), e
deixa por fim um gosto agridoce, mas aberto ao novo. Uma mistura
de crítica comportamental com celebração da vida que não deixa
de respeitar seus personagens, de querê-los com força em seus
pathos (uma exceção: a personagem da
curadora de artes plásticas é mal resolvida nesse sentido).
Signos, clichês, falas marcadas, sutilezas
e solavancos vão se intercalando no filme como numa carta de amor
desgovernada, um filme pessoal na figura da diretora-atriz e com
tiques de performance intelectual, na
proposta de pedagogia poética das cenas. Felizmente para o filme,
essa pedagogia não chega a se fechar num formulário de felicidade,
mas num elogio das possibilidades do que há de mais óbvio e de
mais inesperado no que narra. E sempre que consegue deixar a fuga
melancólica de lado e ultrapassar a fórmula da anti-psicologia
de botequim, consegue pequenas, pequeninas (mas marcantes) epifanias
de cinema. Com erros, acertos, excessos e fissuras.
Miranda July consegue pôr à mostra uma política
cênica e dramatúrgica rara em sua afirmação da alegria. Um cinema aberto
ao encantamento visual e ao entusiasmo do olhar, gerado na fricção
entre a declamação de vontades e a contemplação do cotidiano.
Plataforma promissora (e arriscada em sua predisposição ao comodismo
de linguagem) para a obra de uma jovem realizadora inquieta. Ainda
que seja missão difícil manter focada nos próximos trabalhos essa
certa falta de “limites”, de “noção do ridículo” (de vergonha
mesmo...), ela se destaca no panorama achatado do lirismo audiovisual
contemporâneo.
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