O Exercício do Poder (L’Exercice de L’Etat),
de Pierre Schoeller (França/Bélgica, 2011)
por Raul Arthuso

\À parte o povo, o Estado

O Exercício do Poder tem duas características interessantes em sua narrativa, que dialogam abertamente com grande parte do cinema cujo tema central é a política de cúpula, caso deste filme francês. A primeira delas é a noção de espetáculo envolvendo a alta política. No filme, acompanha-se a rotina do Ministro dos Transportes da França (Olivier Gourmet) enquanto há uma grande negociação para a privatização das estações ferroviárias do país. Entre as negociações, o filme se detém em aspectos da vida pessoal do protagonista, mas sem envolver-se. O principal interesse reside em mostrar que a política é antes uma encenação, um tratamento da imagem pessoal que se tornará pública.

Na primeira cena, em um grande salão vazio, homens vestidos inteiramente de preto, como os assistentes do bunraku (o teatro de bonecos japonês), constroem a cenografia do lugar preenchendo-o com os móveis e objetos de escritório. Ainda que logo em seguida a cena se mostre um sonho do protagonista, ela insere a idéia de observação da construção de uma figura pública, e disso como motor das relações das altas esferas do poder. O poder, então, está relacionado à aparência. Mesmo com todas as negociações políticas em curso entre ministros ao longo do filme, o principal conflito da história parece se resumir na recusa do protagonista em receber um título maligno para a posteridade - no caso “o ministro das privatizações”.

Se grande parte das obras sobre figuras políticas – desde documentários como Entreatos e Primárias, até ficções como O Crocodilo ou Il Divo – tratam de tentar revelar o homem por trás do político (mesmo porque várias vezes os filmes se aproximam de figuras com as quais não necessariamente o realizador concorda), em O Exercício do Poder a questão está em revelar que não se trata de revelar nada, pois o impulso da alta política está relacionado com a construção de aparências para o povo. Então, os discursos são mais importantes durante sua escrita que propriamente em sua exposição, quando não recebem qualquer destaque especial.

George HarrisonPor outro lado, há um segundo ponto interessante, que é a ausência do povo, que realça a fratura entre a alta política e a população. Durante todo o filme, há uma greve dos trabalhadores que atinge em cheio outro ministério, o do Trabalho, que é apenas lateral no filme. Em certo momento, o Ministro dos Transportes encontra os grevistas, por acaso, e é hostilizado por eles. Porém, o protesto não se dirige contra ele, mas contra outro político, e, portanto, não tem efeito contra ele, já que não atinge sua imagem. O exemplo mais próximo de contato com a população se dá com seu novo motorista Kuypers (Sylvain Deblé), com quem interage, vai até a casa, conhece sua esposa, toma vinho. Kuypers, porém, é monossilábico e dele nada se tira. É um homem que talvez não seja alienado, tenha consciência política, vote, sinta indignação com sua situação econômica difícil: a problemática é a impossibilidade de sabê-lo, pois ele não tem voz, mesmo com a distância encurtada pela relação direta que tem com os homens do poder.

É, num certo sentido, uma combinação explosiva a que se constrói na narrativa de O Exercício do Poder: se por um lado vemos a construção da figura daquele que exerce o poder estatal, por outro essa se dá à parte daqueles para quem a figura construída deveria representar. É como se o significante não tivesse significado. E daí sai a hipótese da descrença do povo no Estado: os homens do poder farejam o esteticismo de suas próprias formas.

Outubro de 2011

editoria@revistacinetica.com.br


« Volta