in loco - cobertura do Festival do Rio

Exiled (Fong Juk), de Johnnie To (Hong Kong, 2006)
por Paulo Santos Lima

Violência e paixão em Macau

A carreira de Johnnie To iniciou-se em Hong Kong em 1980, com um ótimo currículo de artesão até se firmar, nos últimos anos, como um grande autor do cinema, ao nível de colegas seus mais cultuados nos EUA (ou seja, no mundo), como Tsui Hark e John Woo. O reconhecimento tardio dele por aqui nos parece um pecado similar a atirar pedra na cruz, mastigar hóstia, galantear freiras, pichar muro de igreja, etc. Eu mesmo vim a conhecer a direção de To ano e meio atrás, com o lançamento em DVD de Breaking News, e a desatenção com o seu nome em parte é explicada pela idéia caduca de que filme de ação não é “arte”.

Bem, Exiled é alta arte, e naquilo que os filmes de Johnnie To sempre primam: o espetáculo visual antes da história que está sendo contada; expressão visual, não textual. Ou seja, a câmera percorrendo espaços e assistindo à ação com uma desenvoltura magistral, com montagem orgânica que dá sentido à sucessão de planos, que dialogam entre eles em cadência operística. Um bom exemplo seria a grua que serve para apresentar o espaço no qual acontecerá um tiroteio, como um tabuleiro onde uma coreografia nos será apresentada. Como nos faroestes de Sergio Leone (trilha sonora, grandes espaços, inclusive desérticos, confirma isso); como nos filmes de Sam Peckinpah (na história, a ameaça à ordem segura do lar que está em Sob o Domínio do Medo e a autodestruição lúdico-brutal que está, por exemplo, em Meu Ódio Será sua Herança, filme que também conta com pequeno grupo de amigos filmados lado a lado caminhando para a barbárie da morte).

O primeiro plano do filme mostra a ordem do lar sendo ameaçada por uma batida de porta. Uma batida educada (falarei porque em breve). São os gangsteres de Feng que procuram Wo (Nick Cheung), que abandonou o clã, trocando o crime pela vida comum. Saberemos que há tempos Wo percorreu estradas em sua fuga, até agora pouco, quando casou e teve um bebê, fixando em Macau. Macau, uma cidade que carrega um estrangeirismo e uma transitoriedade, uma vez que a história se passa às vésperas do país sair das mãos portuguesas. Mas os capangas têm total respeito a Wo, sobretudo Blaze (Anthony Wong), que ingressou com ele na tríade, ambos jovens, como nos mostra uma foto deles. Esse pêndulo entre violência e amizade é o que fertiliza os exercícios estéticos do longa, cuja montagem orquestra imagens que mostram os personagens em comunhão e em agressão, isso quando não faz o sublime: no mesmo plano juntar as duas forças, a de vida e a de morte, como quando ouvimos o choro do bebê no extracampo e os mafiosos dão uma pausa na execução para prepararem um belo jantar.

Não é por menos que no combate final, o quatro colegas justiceiros de Feng antes de porem seus corpos sob o risco das balas, tiram lúdicas fotos 3x4 ali mesmo, no cenário onde ocorrerá a matança. Porque este filme de Johnnie To pega emprestado o operístico do spaghetti, traz à cena os filmes policiais orientais à la Hollywood mas, ao chegar em Sam Peckinpah, tenta saída outra. Se no cinema desse diretor americano há um agente externo que irromperá no homem o seu instinto mais animal, mais sanguinário, em Exiled a violência, se um dado real e inevitável, ao menos esbarra em limites, seja os limites ético-morais, seja nos grandes valores humanos, como amizade, afeto e paixão. Não necessariamente numa racionalidade (na tal lógica da razão versus barbárie), que fique claro, na medida em que a violência, “domesticada”, serve a princípios políticos, como vemos em Election. Em Exiled, sobremaneira, é a violência e paixão disputando o mesmo espaço dos acontecimentos – ou seja, da imagem, já que estamos falando de um filme de Johnnie To.


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