Jogo de Poder (Fair Game),
de Doug Liman (EUA, 2010)

por Rodrigo de Oliveira

Reparação impossível

Entre os anos de 2001 e 2003, enquanto os eventos reais retratados em Jogo de Poder aconteciam, e a agente secreta americana Valerie Plume era exposta publicamente pelo governo e pela imprensa direitista em retaliação a um artigo escrito por seu marido e ex-embaixador Joe Wilson questionando as razões de George W. Bush na invasão ao Iraque, o cineasta Doug Liman remontava o parque de diversões da paranóia da Guerra Fria em A Identidade Bourne. Curiosa coincidência de destinos, uma vez que só dois filmes depois no caminho da série de sucesso, as relações reais entre o perdido Bourne e o programa governamental secreto e cruel que o criara seriam realmente explicitadas – isso já em 2007, na metade final do segundo mandato de Bush, ali quando finalmente se tornara possível para a esquerda liberal americana (força majoritária em Hollywood) rejeitar seu presidente estúpido, e a pior administração da história do país, sem soarem antipatrióticos.

Nos últimos quatro anos, o cinema americano tem representado sistematicamente os diversos equívocos da era Bush, sobretudo em torno do Iraque, e em todos esses filmes uma característica em comum chama atenção para a ressaca moral dos realizadores: os protagonistas, diferente de Bourne, são sempre pessoas que sabem exatamente o que há de podre nas manobras do poder, mas são impedidos pelo sistema de tornar esse conhecimento público – eles, no entanto, se revoltam radicalmente contra essa mordaça. Esta é a maneira de Hollywood dizer que estava, ela mesma, amordaçada pelo sentimento de luto da nação pós-11 de setembro, pelo respeito às tropas que lutavam pelo país no exterior, pelo Ato Patriótico, pela insurgência da mídia conservadora e da América profunda – mas que, assim como seus personagens, sabia desde o começo que tudo estava errado. Como Liman/Bourne e o casal Plume/Wilson, a questão era apenas de timing.

Mas não é Jogo de Poder, desfilando Naomi Watts com Plume e Wilson no tapete vermelho da competição oficial de Cannes, que tornará esse conhecimento do real-por-ele-mesmo em algo maior que uma tentativa de reparação pela conivência e pelo silêncio. Isso porque, à moda dessa mesma paranóia que forjou quarenta anos de terror nuclear/comunista e quarenta filmes de agentes que viajam de Kuala Lumpur para o Cairo em questão de segundos, o que há de realmente político no filme é a sensação de um espírito ferido que se vinga de seu carrasco (a representação pejorativa dos assessores de Bush e Dick Cheney, que revelam a identidade da agente, como antes se fazia com os russos) ao mesmo tempo em que se compadece pelas vítimas tristes e colaterais nesse caminho rumo à verdade e a liberdade (os iraquianos aqui, como os vietnamitas um dia foram). E não há truque de edição no pareamento da Valerie Plume-ficção com a Valerie Plume-real que contorne a História: nessa os carrascos venceram, e das vítimas não se sabe sequer o número exato, quanto mais o nome.

Restaria então a pequena política, a dinâmica atribulada de um casal que vê seu casamento ser destruído pela grande ordem das coisas, as sutilezas do confronto entre o ego de um embaixador aposentado e falastrão e sua quieta e eficiente esposa em escalada rápida dentro da CIA, o equilíbrio entre a farsa pública de uma boa mãe num emprego de escritório e o segredo caseiro dos hematomas trazidos de uma missão na Ásia. Mas este é um filme que Doug Liman já fez, e muito melhor, em Sr. e Sra. Smith, sobretudo porque lá o delírio absurdista da comédia de ação proporcionava, contraditoriamente, mais possibilidades de profundidade e criação que neste ambiente baseado-em-fatos-reais (e diga-se, o roteiro de Jogo de Poder se baseia nas biografias que Plume e Wilson lançaram depois de encerrados os julgamentos contra os assessores do governo e os jornalistas que vazaram a história).

Numa cena já no final do filme, vemos o casal discutindo a relação enquanto os filhos brincam num parque, numa escalada de apontamentos de culpa que culmina com Valerie perguntando se o marido acha que ela está mentindo. Casado com uma pessoa cujo trabalho envolve constantemente a interpretação de papéis, a mentira dita de cara lavada, a coragem de resistir à tortura até o fim em nome da sobrevivência de operações, Joe responde: “e como eu poderia saber?”. Esse aspecto, que sempre foi o mais interessante em Jason Bourne, e que Valerie Plume replica quase literalmente (o fato de ser uma máquina de guerra programada pelo governo através de métodos limítrofes e para fins muito específicos, mas que, por ser humana e não máquina real, eventualmente acaba questionando sua funcionalidade diante do resultado das operações), isso passa em Jogo de Poder como detalhe. Porque ser-máquina significa também viciar seus sentidos a tal ponto que a própria humanidade que irrompa daí surja sempre sombreada pela pergunta que o marido faz. Talvez seja hora de parar com os filmes que investem no que se sabia, ou no que se soube depois de tudo, e investir no que ainda é desconhecido – ou no que, tanto a Valerie real em sua biografia como Jogo de Poder, não pode ser publicado ou filmado porque ainda é confidencial.

Março de 2011

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