Falsa
Loura, de Carlos Reichenbach (Brasil, 2007) por
Felipe Bragança
Frágil, mais do que fake Falsa
Loura não é um filme sobre o corpo como heroísmo mítico ou fortaleza da política,
mas sobre a fragilidade do corpo, da solidão do corpo, das suas fissuras. Inconsistência
do corpo que se quer fortaleza ainda que suas luzes simulem um dourado inatingível.
Refúgio e desdobramento do espírito em forma de dança, de cena, de espetacularidade
do afeto. Falsa Loura é a descoberta da tangibilidade do corpo e dessa
tangibilidade como, também, sua sobrevida. Carlos Reichenbach
compõe com seu elenco a mais intra-uterina crítica audiovisual já realizada no
Brasil sobre o estatuto da imagem melodramática e a representação dos afetos femininos
(e por feminino, por si só, já encontramos uma categoria de cena), nos últimos
30 anos de teledramaturgia e da cultura de massa no Brasil. Seu encontro estético
com o romantismo rasgado do universo musical de suas personagens consegue uma
dupla exposição rara e cara a qualquer olhar cinematográfico: a capacidade da
generosidade estética aliada a composição crítica do que se vê. Não existe o brega
como dado social, mas afetos entremeados pelos sentidos de brega que em Silmara
se colocam como sua vontade de poder. O
brega aqui, então, é um desejo de poder, de presença e de afirmação de prazer.
Se a noção de beleza é o tempo todo reiterada com a protagonista, as cenas de
sexo e a forma como Reichenbach vai filmar sua protagonista nestas passagens é
sintomática do movimento que o filme faz para além-do-corpo: Reichenbach aqui
filma rostos. O rosto. Seja no prazer, seja no congelamento do medo, seja no garbo
clichê que Maurício Mattar bem empresta ao personagem, seja no jogo de espelho
entre Silmara e seu irmão travesti, seja no rosto desfigurado do pai da protagonista.
É um filme mais sobre afetos (e por si mesmos, então, entremeados de códigos de
comportamento e de sinais) do que sobre afecções da pele.
Silmara
toda é essa vontade e também esse dilema de se ter alma, de psicologia, sim –
mas uma psicologia que em Reichenbach não vai aparecer como algo natural a ser
destrinchado como sintoma introjetado, mas como algo que se constrói antes de
tudo pela imaginação do que os personagens querem propagar sobre si. A menina
(Briduxa) que se recompõe como menina-bonita e depois tenta se suicidar seguindo
os clichês do corte-nos-pulsos (não à toa é o momento em que Silmara precisa de
ar e pede para ficar sozinha...), é o alter-ego de Silmara que se traveste o tempo
todo numa composição de beleza – calça justa, decotes, brincos... o cabelo loiro.
E
é o loiro do cabelo que indica então o auge de seu poder de cena (e poder de cena
é poder de afeto) e também o máximo de sua fraqueza, debilidade, moleza – porque
é na nudez, no máximo da entrega de sua suposta capacidade de sedução (sua cena
com o menino) que Silmara parece mais frágil e desmascarada. Os pentelhos pretos
no corpo que se queria platinado - o breu na hora do erotismo maior (resquícios
da apresentadora Xuxa em seu filme-tabu, a loira-das-loiras de um universo cultural
que educou a geração de Silmara) que lhe tira a presença, e a voz do menino que,
no escuro-sem-corpo, lhe indica a falha. É marcante a forma como Reichenbach –
um mestre em encontrar corpo femininos no auge da beleza – faz das formas bonitas
de Silmara aqui, quando nuas, a imagem antes de tudo de um desamparo, de uma rarefação,
de uma carência, de uma falta de aura.
A falsidade, então,
no filme, não está na festividade do simulacro ou na condenação do comportamento
social, mas na ferida aberta que é antes de tudo por onde se secreta qualquer
grande personagem de cinema. Vontade de dar aura a ondas de plástico, a rimas
encomendadas, a licores de menta. Não à toa, o canto, por fim, gesto da garganta,
rosto, peito para se fazer música/sacralidade – é o lugar, território então de
reflexão e reorganização afetiva da personagem. O canto substitui a alma porque
a coloca em cena. Durante
a projeção, conexões com Jogo de Cena de Eduardo Coutinho se fazem notar.
Se Coutinho faz uma obra-prima ao se lançar ao universo do melodrama tal como
ele é auto-encenado como cotidiano pelas suas mulheres, Reichenbach vai jogar
o cotidiano de seus personagens, de suas mulheres, para dentro de uma máquina
melodramática (por vezes, uma máquina de videokê gigante!) que vai, ao mesmo tempo,
oprimi-los até o limite (poderes políticos, econômicos, físicos), mas também,
de alguma forma, lhes emprestar a vontade de desejo. Vontade de desejo, sim –
como fabulação ingênua, mas política – ou de uma ingenuidade que se faz política
não pela conscientização ideológica, mas pela anarquia involuntária do sonho.
Como na epígrafe que abre o filme, a dor e o prazer, assim misturados, não colocam
arte e composição de massa um contra o outro, mas também não se limita a uma festividade
sem conflito.
Em Falsa Loura, a alma que quer liberdade
precisa nadar para chegar à superfície (as imagens de ondas e águas em sobreposições
se repetem), mas a água de que depende para projetar seu corpo para cima é a mesma
água que o sufoca. A alma, o melodrama, o cinema de Silmara aqui, dona do filme
é, por isso, esse fôlego profundo. Um fôlego que ela parece retomar no último
plano magnífico do filme, em câmera lenta, num vento que vêm não se sabe de onde
– em que Carlão não nos deixa saber se estamos diante de uma abertura melodramática
de novela das oito, de um filme de Dreyer, ou de uma pintura de Michelângelo.
Porque não se trata aqui de confundir crônica com observação coloquial da vida
(o casting do filme deixa isso claro, optando por trabalhar com ícones,
com uma gestualidade teatral e fugir da noção de cena-sem-cena que se banalizou
em parte do cinema dito contemporâneo no Brasil), mas de entender que, em cena,
o cotidiano se torna fábula. E como fábula (e aí se amarra a generosidade, sensibilidade
estética do cineasta e do cinema), o filme precisa saber ser ao mesmo tempo virtuoso
e entregue a suas pequenas licenças, seus erros, seus clichês, seus atalhos de
vontade. Todo afeto é uma organização de afecções. E sabemos
bem que, por mais que vivamos o ideal da liberdade de um corpo como máquina sem
órgãos e acima do drama; também de clichês e atalhos, grandes afetos aparecem,
já apareceram e nos revolucionaram a carne. Humanista pelo avesso-do-avesso (lembro,
de novo, de Coutinho falando: para se mudar qualquer coisa no mundo, primeiro
você tem que aceitar que algumas coisas existem e se expressam daquela forma,
pelo simples fato delas aparecem assim a você), Falsa Loura vem atropelar
o universo do telemelodrama brasileiro e lhe invadir a festa pela porta dos fundos
(comendo, mastigando, esmigalhando, jogando os cabelos). Passando com um sorriso
no rosto, mas com lágrimas nos olhos. Se em Garotas do
ABC, Reichenbach ainda parecia procurar algum tipo de nova-autenticidade na
sua forma de representação do proletariado feminino, aqui ele dá uma guinada ao
se enfiar não só no meio/lugar, mas na pele da linguagem que o mapeia, de suas
palavras e macetes (autopsia da imaginação) - fazendo isso, porém, sem tentar
determinar essa premissa como fim ou celebração de uma imagem-popular; mas uma
dor, uma falta. A tal falta que o povo faz... Mais do que o corpo que dança,
o musical de Reichenbach observa e explode na tela o prazer que o rosto de Silmara
demonstra em se deixar dançar. E vê ali cinema, política e sinal para uma angústia
estética (e estética como vida, para além do corpo-dado) de rara verdade. Abril
de 2008editoria@revistacinetica.com.br
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