A Falta Que Me Faz, de
Marília Rocha (Brasil, 2009)
por Fábio Andrade
Afetos,
medidos e desmedidos
As personagens de A Falta que me Faznos são apresentadas
pelo momento em que marcam na pele, com uma agulha, nomes e símbolos
de suas respectivas (e, mais à frente saberemos, cambiáveis) paixões.
O plano é ilustrativo de uma abordagem que será predominante em
todo o filme, e que determinará as relações entre a equipe e as
personagens. Como em Merleau-Ponty, estar no mundo é ser alvo
de afetos; viver precisa deixar marcas, sejam elas nos corpos
das personagens, nas paredes, nas portas dos armários, nas árvores
ou no próprio filme. Quando a experiência, em si, não deixa marcas
físicas, é preciso produzi-las, expressando no corpo – e no plano
– o que está impresso no espírito. Não é possível fugir dos afetos.
Oferecer-se
aos afetos, de fato, é ponto de partida. A Falta que me Faz
converte essa disposição em uma política de encenação. Há
dois momentos especialmente ilustrativos. Em um deles, ouvimos
Priscila contar que Valdênia roubou seu namorado. Quando ela conta
isso para a câmera, sentada à beira de um lago, ela arremessa
constantemente pedras para o extracampo. Esses elementos que a
personagem joga para fora do quadro não só denotam uma enorme
soberania em sua relação com o filme, como reproduzem a determinação
das meninas em deixar isso fora do filme, pois está fora da relação
delas (Priscila e Valdênia voltaram a ser amigas depois do episódio).
Um limite é imposto, da personagem para a câmera, e da câmera
para a personagem. Em outro momento, uma das garotas fala sobre
a morte do pai. Sentada de costas para a janela, seu rosto está
completamente escuro, encoberto pelas sombras. O chiaroscuro
confere uma solenidade doída à cena, que é quebrada sempre que
a menina volta o rosto para a luz, e percebemos que ela está sorrindo.
Vem
daí um dos maiores trunfos do filme: perceber a ambiguidade daquelas
situações, daqueles sentimentos e daquelas personagens, e tentar
reconstruir essa ambiguidade cinematograficamente. A Falta
que me Faz é um filme raro por se lançar no desafio do óbvio:
uma vez que se percebe um sentimento que diz íntegro respeito
ao mundo (que, no caso, é ainda mais fortuito por ser um documentário
que encontra seu tema quase casualmente), é preciso buscar maneiras
de representá-lo, de devolvê-lo ao mundo de forma potente, de
restaurar o seu sentido em imagem. Importa menos que se ame este
ou aquele rapaz, e é natural por isso que eles sejam quase deixados
fora do filme. Afinal, é possível acreditar em casamento de conveniência
e, ao mesmo tempo, desejar rasgar o nome de cada namorado no próprio
corpo. O que interessa é justamente a vontade de se marcar, de
viver intensamente cada experiência – cada paixão, cada tentativa
de suicídio – e perceber que o todo (a vida das meninas e do filme)
é constituído por essas marcas, esses rasgos, que só nos chegarão
inteiros se acontecerem, também, dentro da cena.
Marília Rocha parece chegar a A Falta que me
Faz livre de si mesma. Enquanto Aboio respondia diretamente
a todo um repertório visual consolidado pela Teia, e Acácio
parecia ter como preocupação central justamente se distanciar
o máximo possível dessa origem, A Falta que me Faz vem
com o vento, entregue ao mundo que filma e à tarefa de captá-lo
em toda a sua complexidade. A diretora se coloca diante de um
mundo potente (quatro moças adolescentes que moram na cidade de
Curralinho, no interior de Minas Gerais) e a filmagem responde
a esse mundo, seja estabelecendo relações visuais entre as personagens
e a geografia do lugar, criando sentidos que não estão na imagem
bruta natural (e há de se destacar a quase mística capa prateada
da fotografia de Alexandre Baxter e Ivo Lopes Araújo no filme
– que, junto com o curta A Montanha Mágica, de Petrus Cariry,
confirma Ivo como um dos fotógrafos mais instigantes do cinema
recente brasileiro), seja deixando-se contaminar por aquele universo,
em uma intimidade de mão dupla que faz as personagens questionarem
a equipe – com curiosidade pelo mundo distante (mesmo que, ali,
tão próximo) que ela representa.
Janeiro de 2010
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