in loco - cobertura dos festivais
Striptease Familiar
(familystrip),
de Lluis Miñarro (Espanha, 2009)
por Filipe Furtado
Da
carne à obra
À primeira vista cabe a pergunta sobre o porquê
de Lluis Miñarro (co-produtor de filmes como Singularidades
de uma Rapariga Loira e Tio Bonmee) resolver estrear
na direção trazendo ao público este vídeo caseiro que realizou
com seus pais. Logo, porém, começa a ficar claro que, por mais
que sugira à primeira vista um vídeo de lembranças de interesse
restrito à família de Miñarro, Striptease Familiar é mesmo
um filme com um projeto bem cuidadoso e um discurso construído
aos poucos, com muita atenção aos detalhes. A sua simplicidade
esconde uma elaborada construção: Miñarro encomenda a um pintor
local um retrato de seus pais, às vésperas de completar 65 anos
de casados, e ele; ao longo de um mês acompanhamos o trabalho
do pintor enquanto paralelamente escutamos a mãe falar sem parar
sobre sua vida nos anos imediatamente antes e após o casamento.
Esta estrutura é desenhada com uma precisão enorme por Miñarro,
graças a uma decupagem atenciosa que não deixa de sublinhar o
peso de cada ocasional desvio – como quando registra a coleção
de miniaturas de avião do pai – como elemento a mais do painel
que ele constrói.
A estrela do filme é a mãe do cineasta, com uma
memória minuciosa e uma impressionante franqueza, enquanto seu
pai permanece quase sempre em quadro, mas muito mais reservado
sobre o que compartilha conosco. Pensamos em alguns momentos no
Acácio de Marilia Rocha, outro filme conduzido por uma
entrevista com um casal de idade, mas vamos compreendendo aos
poucos o quanto a fala da mãe é apenas a primeira faceta do processo
que Miñarro organizou (e não deixa de ser fascinante observar
o quanto o papel do cineasta Lluis Miñarro aqui não é muito dissimilar
ao que exerce normalmente como produtor). As recordações do casal
Miñarro, que coincidem com a ascensão de Franco, nunca perdem
a sua particularidade própria, mas ganhma um peso especial como
relato do que foi viver numa sociedade especifica, em seu clima
sócio-politico próprio.
Se
fosse só isso Striptease Familiar já teriam um interesse
maior que o de um home movie, mas como mencionamos, esta
é só a primeira etapa de um processo que não se completa sem o
outro protagonista silencioso do filme, o pintor Francesc Herrero
que passa seu longo mês retocando o seu retrato de família. Herrero
é o duplo de Miñarro, e os dois colaboram para cada um na sua
arte transmutar seu casal de protagonistas para outro espaço.
O que está em jogo aqui é narrar o processo pelo qual aquelas
duas pessoas se eternizam como outra matéria, um produto à parte
que até contém rastros dos originais, mas nunca vai capturá-los
em toda sua riqueza (a mãe se decepciona muito ao ver sua forma
no quadro, e podemos imaginá-la sendo igualmente franca com o
filho a respeito do seu filme). Vale ressalvar que o título original
(familystrip) se refere não a alguma analogia entre strip
tease e segredos de família, como indica a tradução ao pé da letra
da Mostra, mas a chamada “comic strip”. Pois assim como os quadrinhos
invariavelmente exageram as características físicas dos seus modelos,
o retrato de Herrero e o filme de Miñarro produzem duplos dos
pais do cineasta que existem, sobretudo, como uma representação
distante. O cinema dá corpo às memórias da mãe, mas somente pode
duplicar ela própria.
Outubro de 2010
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