in loco - 14o fbcu Programa
1: Maduros olhares por Eduardo Valente
Nos últimos dois anos, em que pude acompanhar a totalidade da competição nacional
do Festival Brasileiro de Cinema Universitário, me pareceu claro que esta representa
uma das mais interessantes ocasiões do cinema brasileiro. Isso porque o recorte
definido, neste caso, ao contrário do que acontece com os outros festivais nacionais
temáticos (de documentários a animações, de “filmes de mulheres” a “filmes sobre
deficiências”, da “diversidade sexual” ao “filme livre”), realmente nos indica
algo de significativo a priori sobre a exibição em conjunto destas produções.
Porque ao contrário de gêneros, modelos de produção ou circunstâncias temáticas
ou dos diretores, a origem universitária sem dúvida fala de um mínimo denominador
comum que pode ser apurado e analisado a cada filme, algo que tem a ver com a
potência das “primeiras vezes”. Por isso, olhar esse conjunto como tal se revela
a cada ano incrivelmente enriquecedor em observações sobre o cinema que se deseja
fazer, o cinema que se vê, o cinema que se estuda nas escolas, e como isso tudo
reflete ou amplifica questões para além da simples exibição e avaliação daqueles
trabalhos.
No entanto, já nos últimos dois anos me
pareceu que havia algo ali naqueles filmes que muitas vezes escapava ao simples
interesse deles como conjunto. E este algo, no movimento de escrever grandes textos
retrospectivos sobre uma mostra que exibe mais de 40 filmes por ano, acabava precisando
ser cada vez mais contido dentro de algumas idéias que procuravam nortear os textos
em caminhos que não necessariamente davam conta das obras em si. Sabendo disso,
ainda assim fui ao primeiro dia do Festival deste ano pensando em cobri-lo da
mesma maneira. Porém, a força individual das obras exibidas neste primeiro dia,
e comentadas abaixo, acabaram por me convencer que eu não podia mais ignorar as
evidências, e que as sessões da Competitiva Nacional do Festival pediriam este
ano uma atenção diária maior a cada uma delas. Se ainda não é o ideal utópico
(este seria um grande texto a partir de cada filme), pelo menos chegamos mais
perto de dar aos filmes um pouco da atenção que eles merecem. Haveria
muitas possíveis maneiras de tentar entender o gesto curatorial da programação
deste 14o FBCU (nome carinho pelo qual o Festival é conhecido, e que
utilizaremos a partir daqui) ao montar este Programa 1 da sua competição nacional.
Afinal, não faltaram elementos em cena que permitiam localizar um trajeto minimamente
lógico e rítmico ao longo da sessão, que partia eminentemente de uma preocupação
notável com a idéia mesmo de olhar e de visualidade (seja no que tange os personagens
– algo radicalizado em O Homem Sobe as Escadas, por exemplo; seja no que
tange a questões que vão além das narrativas e falam mesmo do gesto do realizador
como observador – principalmente em Miragem e Coração), mas que
se materializava mesmo era numa colocação dos corpos dos personagens como matéria
que concentra a atenção de cada um dos filmes, de maneira bastante radical. Isso,
claro, além de pequenos ecos e “coincidências” (uma TV fora do ar aqui e ali,
várias idas à praia, etc). No entanto, se este gesto curatorial
é realmente perceptível, o mais marcante da sessão foi algo que o ultrapassou,
pois o que mais chamou a atenção no Programa 1 deste ano foi uma maturidade de
olhar bastante surpreendente para filmes universitários. Ao usar o termo maturidade,
porém, é importante deixar claro o que se quer dizer. Nada relacionado a “temas
nobres e importantes” nem a “seriedade das aproximações”, mas simplesmente a uma
elaboração bastante bem pensada e resolvida das questões inerentes mesmo ao gesto
criador de uma obra audiovisual, ou seja: “o que filmar”; “como filmar”; e, acima
de tudo, a relação entre estas duas questões. Não é raro vermos em filmes universitários
um de dois extremos: a estranha sensação de que, ao longo de um curso universitário,
os realizadores não tinham assistido jamais a nenhum filme, tamanha a ingenuidade
ou falta de tato audiovisual de suas composições; ou que haviam assistido a filmes
demais ao longo do curso, e agora sentiam uma necessidade excessiva de referenciá-los,
copiá-los ou satirizá-los, sem conseguir em nenhum destes gestos construir para
si mesmo um olhar, uma vida própria para além daquele metacinema. Pois
poucas vezes vimos uma coleção compacta de trabalhos tão uniformemente bem resolvidos
nestes quesitos em edições passadas do Festival. Seria isso uma marca deste ano,
um sinal dos tempos? Parece estatisticamente pouco provável, mas o fato é que
isso só poderemos julgar com o correr dos dias. Mas, certamente, foi algo impossível
de deixar de perceber neste primeiro dia. Não que os filmes fossem todos brilhantes
ou sem ressalvas a qualquer uma destas questões – apenas que conseguiam chamar
a atenção mais para seus sucessos do que seus fracassos, o que, numa série de
primeiros trabalhos, é sempre no mínimo promissor. Paternidades
e filiaçõesTomemos, por exemplo, o primeiro filme de todos
apresentados, Sobe, Sofia, dirigido por André Mielnik (com co-direção de
Flora Diegues, da PUC-Rio). Não por acaso, o filme começa com um plano que nos
remete de alguma maneira ao Encontros e Desencontros de Sofia Coppola:
ainda que em enquadramento bem diverso, o filme nos apresenta o seu universo a
partir de um detalhe bastante peculiar – a bunda de uma jovem garota. Claramente
não é caso exato de citação ou referência, mas a lembrança logo se revelará precisa
em mais de uma maneira. Primeiro porque se trata aqui também da narrativa de uma
jovem em estado bastante descolado da realidade à sua volta. Mas principalmente
porque, ao partir para a solução audiovisual da transposição desta sensação, Mielnik
vai deixar claro o conhecimento (e uma boa dose de filiação) de um cinema contemporâneo
que, de fato, tem dominado a gramática mais recente de um certo circuito de arte.
Trata-se de um escopo um tanto amplo, é verdade, que vai
desde Sofia Coppola a Hou Hsiao-hsien, passando por Lucrecia Martel e Jia Zhang-ke
(com sentidos absolutamente distintos). Mais do que filiar-se a um deles especificamente,
ou principalmente do que construir um olhar propriamente seu, o que o filme de
Mielnik exibe é antes de tudo o conhecimento da existência deste cinema (algo
que, a título de bastante do que é produzido e circulado por aí, tem um quê de
louvável em si mesmo), e depois o desejo de experimentá-lo, de visitá-lo, como
quem nos primeiros passos esboça a
busca de uma paternidade (não devendo ser coincidência também para esta sensação
o fato de que o projeto tem origens distintas enquanto material dramático – os
roteiristas; e audiovisual – o diretor e o fotógrafo, que dividem a montagem).
De fato, a impressão principal de Sobe, Sofia é a de tatear um determinado
cinema como quem busca ali uma matriz e está curioso por entender como ele se
constrói. E nisso, ele se resolve bastante satisfatoriamente, com uma sensibilidade
bastante aguçada dos espaços e da fotografia. Se ele se resolve aqui e ali através
de algumas muletas fáceis deste mesmo cinema (a crença no desfoque como encarnação
automática do sensível; ou o apelo aos cortes elípticos bruscos como solução dramática
constante), ainda assim o faz bem melhor do que, por exemplo, um À Deriva
ao recorrer aos mesmos expedientes. E antes que Mielnik procure agora explorar
as potencialidades de um meio do que no seu terceiro longa esteja chegando aos
mesmos tateares como elaboração de uma linguagem “pessoal”. Bem
diferente deste amoroso aproximar-se de um determinado cinema era o outro gesto
eminentemente metalinguístico da sessão. Em Filme de Apartamento, já desde
o título Marcela Bertoletti (UFF) faz referência irônica a uma determinada produção
hiper-presente no curta-metragem em geral, mas no universitário em particular.
No entanto, pouco no filme é questão de ironia, a começar mesmo pelo título: o
filme é “de apartamento” não tanto por pertencer a um gênero, mas principalmente
porque seu personagem principal será muito mais habitado pelo apartamento ao longo
do filme do que o habitará. Não deixa de ser, de fato, um filme de fantasmas,
cujas relações nunca apreendemos de todo e que vamos aos poucos costurando. Se
ao final o curta parece não dar conta da totalidade de suas (consideráveis) potencialidades,
pelo menos o que fica de mais marcante são algumas sequências visual e sonoramente
fortes, como principal aquela ao som de “You don't know me”, de Caetano. ExperimentarUma
das principais qualidade de Filme de Apartamento (sua fotografia) se confirma
como uma constante na produção da UFF, pelo menos a que se pôde ver na sessão.
Os outros dois curtas da universidade fluminense foram fotografados pelo mesmo
aluno, José Eduardo Limongi, e têm em comum uma mesma manipulação de bitolas e
de pós-produção buscando efeitos sensoriais bastante ousados no campo visual.
Não por acaso pelo menos um dos filmes é resultado da realização durante a matéria
de fotografia: Os Inocentes, de Davi Kolb. Adaptação de Rubem Fonseca,
o filme mistura um começo com tonalidades oitentistas, complementadas pela trilha
de Armação Ilimitada. Depois disso, uma dupla ironia entre uma família se dirigindo
à praia e os cortes a uma situação trágica acabam esvaziando-se um pouco de força
entre si, provando o quanto a escrita ao mesmo tempo seca, irônica e dolorida
de Fonseca é de enganosíssima facilidade na transposição do cinema. Não
sem acertos (como os ótimos diálogos no carro, num uso curioso de som abertamente
fake), o filme acabou também prejudicado pelo lugar na sessão, entre os
dois filmes mais fortes, que ecoaram em temas ou situações levemente semelhantes,
e bastante melhor resolvidas. Ainda assim, Os Inocentes chamou a atenção
pela força de suas imagens, algo partilhado pela outra fotografia de Limongi,
Coração (foto ao lado). A extrema delicadeza e a duração curta do filme
de Pedro Faissol também não encontraram seu melhor lugar na sessão, em que sua
narrativa poética quase inefável acabou sendo um tanto engolida pela duração e
o tom mais catártico dos filmes entorno. Assim, mesma sensação final: ainda que
não apreendido da melhor maneira (faz parte dos mistérios da programação de curtas),
o filme deixa na lembrança imagens de uma presença rara, causando o desejo de
uma futura volta a ele. Se
os dois filmes da UFF acima citados chamam a atenção pelo apuro estético de suas
experiências, em outros dois filmes da sessão trata-se da dimensão (não)narrativa
que advém a maior força. Miragem, de Bruno Pucci (Unisul), começa com um
pé e tanto numa estética fake hipertrabalhada em estúdio, cuja junção a
uma narração off poética e a imagem um tanto desgastada da TV fora do ar remetem
a alguns caminhos já bastante trilhados. No entanto, o filme mergulha rumo a mistérios
visuais e narrativos bem mais interessantes, acompanhando uma personagem feminina
cuja relação com a câmera e com o olhar (do espectador, mas também do cineasta)
se problematiza em passagens bastante distintas estética e narrativamente. É um
filme intrigante, que trabalha bastante com a fetichização do corpo feminino e
sua exploração (duas imagens fortes: o corpo nu morto em fusão com vísceras e
o raspar de sobrancelhas frente a um espelho), e que embora termine de maneira
um tanto abrupta captura inegavelmente o olhar e a sensação do espectador. Da
mesma maneira, O Homem Sobe As Escadas, de Julia Nemirovsky (PUC-Rio),
transita entre a indeterminação narrativa como ponto de partida e o trabalho com
as imagens fetichizadas e os olhares – aqui mais diretamente com os dos personagens.
À figura feminina algo (muito) lolitesca contrapõe-se clichês masculinos curiosamente
incompletos, num jogo bastante envolvente de ritmos e decupagem que, mais do que
sentidos ou confusões por si, busca claramente uma dimensão lúdica através dos
trabalhos de montagem e de fotografia de extrema inteligência (o uso da paisagem
carioca aqui merece especial elogio). Da ironia melancólicaCuriosamente
os dois filmes mais bem resolvidos da sessão trafegam por caminhos bem pouco esperados
a partir de um mesmo subgênero clássico do cinema: o filme de praia. E partilham
uma mesma sensação agridoce do mundo que, por mais que explorem eminentemente
sua porção irônica, quando não hilária, deixam na boca um certo gosto melancólico
firme. E, mais curiosamente ainda, são filmes que vêm de dois estados que têm
dado seguidas mostras de uma produção audiovisual inquieta e profundamente instigante
(em especial no curta-metragem). Alto
Astral, de Hugo Pierot e Gláucia Barbosa (UECE), tem bastante do feeling
peculiar de uma recente produção cearense que mescla um alto grau de ironia com
um sentido especial da construção cênica. Aqui, os diretores usam desde o primeiro
plano uma estética típica das câmeras de celular (no debate depois da sessão descobrimos
que foi usada uma câmera fotográfica, mas o efeito é bem próximo), que vão ocupando
rápida e indelevelmente o lugar do antigo Super-8 na sua função de home movie.
Pois Alto Astral é um home movie de férias na praia no qual o mal estar
se impõe gradativamente, por mais que seus personagens prefiram tentar manter
o clima previsto no título. Formado por planos que são unidades separadas no tempo
em bloco, o filme chama a atenção pela inteligência dos enquadramentos (um deles,
genial: o que apresenta a situação absurda que deflagra o mal estar no filme)
e também pela manipulação precisa da duração destes. Ao final, o close num celular
que fecha o filme, embora com sentidos narrativos outros, parece confirmar o título
alternativo que o trabalho poderia ter (ao modelo do Filme de Apartamento
e daquele que comentamos a seguir): Filme de Celular. Já
Filme de Sábado, de Gabriel Martins (UNA), trabalha na ordem inversa: de
um começo que remete a um certo estado de tédio comum num cinema recente de matriz
principalmente asiática, ele avança cada vez mais rumo à farsa e ao falso, no
sentido estrito do termo. Não são poucas as coisas no filme que nos fazem pensar
no cinema de Quentin Tarantino, desde alguns elementos como os movimentos de câmera
(de enorme precisão e elegância) até o uso da trilha sonora e o design
dos créditos. Mas para o diretor não se trata de referenciar nem entender a influência
de Tarantino pelos sinais mais óbvios (tanto que quase não se fala no curta –
embora quando se fale, possamos ver um semelhante prazer pela frase exata e pelas
atuações offbeat), mas principalmente de celebrar um mesmo tesão pelo fazer
cinema que é exalado do filme em cada plano até que se materialize na tela com
a solução final pelo elogio do mundo que o cinema cria. Que o filme tenha sido
o último da sessão pareceu um fecho adequado após um passeio bastante instigante,
que começou na paixão ainda não de todo resolvida por alguns cineastas de Sobe,
Sofia e termina no amor declarada e desbragado pelo cinema como um todo do
Filme de Sábado. Se o resto do Festival conseguir manter o nível e o ritmo
deste programa, é caso mesmo de pensar que os cursos de cinema andam acertando
em algo no que se refere a manter o amor dos seus alunos aceso. Agosto
de 2009 editoria@revistacinetica.com.br
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