in loco - 14o fbcu Programa
2: Solitários jogos de cena por Eduardo
Valente
Depois de uma primeira noite que nos
pegou a todos de surpresa pela extrema regularidade do resultado das propostas,
este segundo programa competitivo do FBCU 2009 foi uma até certo ponto bastante
saudável lembrança de que nem sempre poderia ser assim num conjunto de filmes
realizados por diretores e equipe que ainda tateiam os primeiros passos na construção
de suas obras audiovisuais. Isso, não custa reafirmar, está longe de se configurar
num problema, por ser questão estrutural mesmo do que se espera encontrar num
festival universitário: tanto melhor que seja o lugar que abrace de alguma forma
a possibilidade do erro (desde que a partir da disposição aos riscos, como foi
o caso na maior parte dos filmes vistos).
Este delicado
equilíbrio entre tentativa e sucesso também faz parte do trabalho da curadoria
de um festival, não só pelas escolhas que toma ao incluir filmes (automaticamente
excluindo outros), mas, no caso de uma sessão de curtas, principalmente pela maneira
como decide programá-los. Nesse sentido, o começo do Programa 2 não foi particularmente
feliz para os filmes ali exibidos, uma vez que pelo menos os três primeiros trabalhos
pareciam bater por demais em algumas mesmas teclas (expressão que fica mais adequada
ainda quando, no caso dos dois primeiros filmes, isso inclui o ato de escrever
num computador). O mais prejudicado com isso acabou sendo Ensaio Sob 12,
de Daniel Favaretto (FAAP),
terceiro filme a ser exibido e aquele de proposta mais radicalmente arriscada.
Embora não seja de todo bem resolvido, o filme ainda assim foi um dos mais firmes
em suas propostas, com o desejo de confrontar qualquer noção de naturalismo no
registro de suas atrizes, numa narrativa que se dedicava mesmo a investigar os
limites entre teatro e cinema, entre personagem e... bem, personagem (já que não
se trata de uma questão de vida real e encenação, mas sim de uma personagem ficcional
que sai e volta da sua vida para a daquela outra que ensaia). Recebido com risadas
por parte da platéia, o filme de Favaretto certamente tinha muitos pontos de interesse,
como seu trabalho cuidadosíssimo com iluminação e câmera. Mas, deve servir de
consolo para o diretor saber que cineastas como Garrel ou Pedro Costa também são
recebidos ainda hoje com risadas desconfortáveis num ambiente tão “culto” quanto
o Festival de Cannes. Confrontar a zona de conforto dos espectadores às vezes
cobra um preço injusto. Não
ajudou o filme de Favaretto ter vindo logo depois de A Visita, de Paulo
Anomal (PUC-Rio); e 14 Noites, de Christian Abes (UFSC - foto ao lado),
que já vinham questionando em suas narrativas alguns dos mesmos temas, como a
relação entre a realidade e o delírio dos personagens dentro dos filmes, e principalmente
um recuo metalinguístico sobre o cinema como construção. Dentre os dois, 14
Noites certamente era o mais instigante, com um trabalho de som e imagem muitas
vezes claramente devedor de David Lynch. Mas Lynch certamente é dos cineastas
mais ariscos de se capturar como referência, pelo simples fato de que boa parte
do interesse do seu cinema deve-se ao pouco tangível conceito de talento e sensibilidade
mesmo. Usar as mesmas ferramentas de Lynch já foi o grande erro de uma série de
diretores, especialmente os iniciantes, porque algo que não se pode copiar é o
domínio do tempo cinematográfico ou da matéria mesmo fílmica que o cineasta americano
possui. 14 Noites é obviamente incapaz de atingir tudo aquilo a que se
propõe na construção de climas e desconstruções, mas no entanto ainda assim tem
algumas ótimas idéias. O mesmo não pode ser dito de A Visita, filme que
tateia territórios já mais que batidos (a crise criativa, a paranóia urbana, a
solidão trancada num apartamento), sem chegar a apresentar nada de novo ou, principalmente,
de particularmente pessoal sobre o tema. Dois
outros filmes reforçaram uma mesma relação na origem dos projetos que estes três
primeiros já exploravam: uma matriz literária ou teatral. Agda de Hilda,
de Maria Clara Teixeira (UFOP), mistura os dois casos, uma vez que se origina
em textos de Hilda Hist, mas começou a ser feito como exercício de criação teatral
(sua origem é no departamento de Artes Cênicas da universidade de Ouro Preto).
É um filme que toma inúmeros e bem vindos riscos (não só na mistura de registros,
mas principalmente quando começa a estabelecer uma relação entre a palavra escrita
na tela e as imagens), mas que não nega sua condição de exercício em processo:
irregular, e um tanto quanto incompleto. O que não deixa de ser o caso também
de Uma Flor, de Érica Rocha e Gilson Junior (Estácio de Sá), filme que,
mesmo atrapalhado pela exibição de uma cópia digital em péssimo estado, não nega
que seu interesse maior na aproximação com um material original de Clarice Lispector
é a de tentar encarná-lo visualmente sem apelar para a palavra. Como se poderia
esperar de tal proposta, alguns belos planos são conseguidos, mas no geral a presença
das personagens não se torna concreta para o espectador, e muitas vezes o desejo
de “experimentar” com enquadramentos incomuns acaba sendo mais forte do que a
necessidade para tal do material. Solidões compartilhadas Embora
também lidem com questões de representação, os três filmes mais interessantes
da sessão exacerbaram mais outro elemento já presente nos filmes já citados: a
questão da solidão e das dificuldades de se colocar no mundo, e em especial desta
solidão compartilhada que muitas vezes caracterizava os relacionamentos amorosos.
Para
os mais inteirados com o panorama do curta brasileiro atual, talvez Elétrico
Jardim da Escuridão, de Mariana Campos (UFMG), apresente menos surpresa pela
sua exploração de estética absolutamente calcada no trabalho do realizador mineiro
Carlos Magno. Só que não se trata nem de cópia nem de influência, mas simplesmente
de uma constatação prática: a diretora tem trabalhado junto com o diretor, sendo
que neste filme mesmo ele participou ativamente do processo de finalização do
projeto, principalmente como montador. Talvez boa parte do interesse do filme
para a platéia presente constate que as características peculiares deste cinema
(uma radicalização da primeira pessoa, a quebra de fronteiras entre experiência
vivida e encenada, alguns elementos formais como a contagem de planos ou a manipulação
das cores para um monocromatismo) ainda possuem um alto teor de novidade para
quem não conheça os trabalhos de Carlos Magno. No entanto, o que de melhor há
em Elétrico Jardim são elementos claramente da própria diretora: uma exacerbação
assumidamente adolescente dos sentimentos amorosos e a maneira de usar os objetos
para reconstruir uma relação pessoal. São justamente aquilo que faz crer que,
para além de uma certa “carlomagnização” excessiva do material, exista ali um
olhar pessoal firme e único, a ser melhor explorado e exposto em futuros trabalhos. Um
mesmo cuidado de construção através de som e imagem caracteriza os outros dois
filmes. Preguiça, de Raphael Fonseca (UERJ) apresenta um trabalho curiosamente
semelhante ao de alguns filmes de Marguerite Duras, ao propor narrativas paralelas
distintas na banda de imagem e na de som – embora não com o radicalismo da diretora
francesa, já que aqui há uma relação direta entre os dois elementos, mesmo que
não representando os mesmos personagens. Há ainda uma outra característica curiosa,
que é o uso da mesma série de imagens em uma repetição que vai mexendo apenas
no foco destas (com sentido um pouco óbvio, talvez), até uma leve, mas decisiva
alteração final. Tudo isso, completado por créditos que fazem uso de um inesperado
elemento narrativo já plantado anteriormente mas só então esclarecido, dá ao filme
uma mistura de profundidade temática e leveza de tratamento bastante saudável,
que nem mesmo uma certa desigualdade entre as partes (as imagens sendo bem mais
interessantes do que os fracos diálogos em off) torna menos interessante. Finalmente,
Uma Canção de Dois Humanos, de Giovanni Barros (UFF), certamente não foi
favorecido na sua fruição por vir fechando uma sessão um tanto longa e árdua em
temas e formatos. Ainda assim, o apuro visual e sonoro do filme chamam a atenção
para uma certa sensibilidade artística bastante incomum na produção universitária,
pela escolha por uma imagem e trilha sonora que estabelecem uma relação com um
classicismo hiper-real que parece o tempo todo questionar o espectador na sua
relação com o que vê na tela: há alguma ironia ou um abraço a tais características?
Com isso, o filme transita o tempo todo no fio da navalha entre uma elegância
exacerbada e sua transformação em pastiche. Pela coragem desse transitar ele já
mereceria alguns pontos a seu favor, mas a verdade é que na medida em que encaminha
para o desfecho o filme cresce bastante, e consegue dar conta de deixar todas
as suas intenções bem claras e resolvidas. Agosto
de 2009 editoria@revistacinetica.com.br
|