in loco - 14o fbcu Programa
3: O real, esse problema por Eduardo Valente
Dentro da opção cada vez mais marcada da curadoria do FBCU por programar sessões
quase temáticas, este Programa 3 da competição nacional, não sem problemas sérios
de fruição ao longo do mesmo (em especial nas seqüências que uniam os três primeiros
filmes, e depois nos três seguintes), acabou sendo aquele que, até agora, mais
permitiu que o acúmulo de determinadas linhas de raciocínio permitissem chegar
a alguns pontos de interesse maior. Nem tanto por ter sido um programa que girou
em torno de uma questão que, como bem notou o realizador Pedro Jorge no debate
após a sessão, “está cada vez mais em pauta” (a da perda progressiva das fronteiras
entre o real e o encenado – algo que, de resto, acompanha o cinema desde seu nascimento),
mas principalmente porque a maneira como os seus filmes se articularam em torno
desse assunto permitiram algumas observações pontuais bem mais agudas do que a
generalidade retórica que o tema propõe a princípio.
Curiosamente,
os dois realizadores daquilo que poderíamos considerar mais diretamente como os
dois documentários exibidos na sessão (Pastoreio, de Alexandre R. Garcia,
da FAP-PR; e A Vermelha Luz do Bandido, do próprio Pedro Jorge, da Anhembi-Morumbi),
partiram de formas bem distintas de uma recusa do formato mais comumente associado
ao gênero – as chamadas “cabeças falantes”. Uma recusa aliás que, enquanto discurso
estético-político, tem um tanto ingenuidade, como se este formato fosse em si
o lugar do jornalismo ou da caretice, o que uma quantidade enorme de obras já
provou não ser o caso (mais obviamente o trabalho de Coutinho pré-Moscou,
mas também uma série de outros filmes). Afinal, caretice ou a ausência de elaboração
cinematográfica não são apenas questões de forma, e especialmente não são questões
resolvidas em equações simples (tal plano é publicitário, tal plano é jornalístico,
etc e tal). Mas, se excluído o teor de “recusa como ponto de partida estético”
(algo que é mais claramente o caso em Pastoreio), claro que esta recusa
como desejo para melhor solucionar este determinado filme que querem fazer não
tem nada de errado, muito pelo contrário. Só é interessante ver como, ao fugir
de um formato dado, os realizadores vão se aninhar em outros formatos também bastante
utilizados. No
caso do filme paranaense, esta filiação está bem clara na tela, mas sem precisar
se tornar um tema do trabalho. O diretor mencionou no debate nomes como Hou Hsiao-hsien
e Cao Guimarães (que, enquanto registros de filmagem, já trabalham em lugares
bem distintos), mas a referência que mais chama a atenção no filme é mesmo a do
chinês Jia Zhang-ke – e nem tanto o seu trabalho mais conhecido com a ficção,
mas aqueles em que ele vai diretamente ao documentário, em especial In Public
e Dong. Porque se de fato a idéia de contemplação é obrigatoriamente parte
do trabalho de Garcia, parece mais interessante observar a inteligentíssima articulação
construída pelo filme no trabalho com o fora de quadro, na relação entre som e
imagem, mas principalmente na relação das figuras (humanas ou animais, uma vez
que o filme acompanha o peculiar ofício de um pastor de ovelhas em pleno perímetro
urbano curitibano) com a cidade – aqui presente via arquitetura, carros e também
os parques urbanos. Em todas estas articulações, Garcia
consegue fazer um filme absolutamente preciso (no que certamente deve ter ajudado
o olhar da orientadora Maria Augusta Ramos), onde os tempos dos planos nunca parecem
comodamente excessivos para causar “efeito artístico”, mas sim acompanhando a
duração necessária para que as ações penetrem em quadro, evoluam, e continuem
para além dele. Quase no final do filme, um detalhe pequeno no desenho de som
(o ressaltar de uma fala quase fora de quadro de um outro personagem que diz que
o pastor estaria “virando estrela da Globo”) fecha muito bem o filme com uma pitada
de questionamento sobre a performance do personagem para a câmera, tirando qualquer
resquício de “cinema direto puro” que se pudesse querer ver no filme (embora não
me pareça haver nem um pouco disso em questão, desde o princípio, com o já clássico
plano que revela pela primeira vez a presença das ovelhas – um primor de manipulação
com ares de “apagamento do olhar” que lembra o Five, de Kiarostami). No
caso de A Vermelha Luz do Bandido esta articulação entre recusa do formato
“cabeças falantes” (algo mais importante para o realizador, como ficou claro na
sua fala no debate) e a escolha de uma outra matriz estética se resolve de maneira
mais problemática. Isso se dá pois, embora aja a recusa às cabeças que falam como
imagem, não há a mesma recusa às “vozes do saber” como dado formal – o que, mesmo
que passado para o campo do som, em deslocamento de imagem, coloca o filme num
registro de informação bem mais conservador por mais que se tente recusar isso
com a mescla em cena com a presença de personagens ficcionais-performáticos. Em
segundo lugar, porque ao tomar o Bandido da Luz Vermelha através de uma
luz (com o perdão da redundância do termo) eminentemente hagiográfica (o curta
se assume como um “tributo”), Pedro
Jorge parece não se dar conta de que a relação estética de apropriação que estabelece
com o filme original de Sganzerla, recriando artifícios de linguagem deste (seja
com deslocamentos ou pela pura cópia) acaba sendo, no fundo, uma solução bastante
conservadora também. Mesmo que coloque em cena a voz de Jean-Claude Bernadet pedindo
que o realizador questione os motivos do seu fascínio com o filme, a carne formal
do seu trabalho não segue por este caminho. E aí não deixa de haver uma certa
traição ao espírito sganzerliano, a partir do momento em que a “avacalhação”
do curta é sempre muito comportada; ou por outra, muito conformada em tomar o
Bandido como um horizonte quase sempre absoluto. Com isso tudo, a verdade
é que um real sentido de anarquia ou contestação não tem muito lugar no filme,
que acaba tendo com relação à obra original a mesma distância que podemos entrever
entre as figuras artísticas e públicas dos escolhidos para ser o “bandido” de
cada trabalho: Paulo Villaça lá; Seu Jorge aqui. A Vermelha Luz do Bandido
acaba sendo, não importando a dedicada paixão do seu realizador pelo filme de
Sganzerla (ou principalmente por causa dela), uma inversão com relação à obra
original da mesma ordem que as palavras no título do curta indicam.
A
perigosa atração do real
Entre os
curtas “de ficção” vistos na sessão, dois focos distintos de interesse de aproximação
com o real foram marcantes (na maior parte dos filmes, através da combinação dos
elementos): o primeiro, de ordem estética, diz respeito a um desejo de conseguir
dar conta de uma “performance do real” através da tentativa de apagamento do olhar
do realizador como manipulação da realidade, buscando uma ilusão de “captura do
cotidiano como ele é”. O segundo foco foi a tomada de uma determinada questão
ou situação sócio-política como principal ponto de interesse do filme enquanto
obra – ou seja, caindo na seara dos chamados “filmes de tema nobre”. Embora
estes sejam dois pontos de partida bastante complicados por si mesmos, e que representam
por isso mesmo um problema e tanto para realizadores iniciantes em especial, a
prova de que eles não se constituem prisões inescapáveis para que se atinja resultados
fortes como cinema foi o filme Crédito, de Lucas Camargo de Barros (FAAP),
que dividiu com Pastoreio os momentos mais fortes da sessão. Se o curta
é claramente pensado quase como a ilustração de um postulado sócio-econômico de
inspiração marxista, ainda assim ele impressiona justamente por conseguir deixar
arestas soltas o suficiente na definição de seus personagens para que eles pareçam
existir cinematograficamente – não
no sentido tolo de que “parecem gente de verdade”, mas justamente no sentido de
que parecem seres construídos que fazem sentido dentro da articulação narrativa
do filme. Há no protagonista do filme e na sua relação com o seu entorno (família,
trabalho, desejos de ascensão social, etc) um grau de elementos complexos tal
que o filme consegue aquilo que de melhor a ficção atinge de vez em quando: que
acreditemos que conhecemos aquelas pessoas sem por outro lado poder afirmar que
as “entendemos”. Tudo isso se constrói por um posicionamento de câmera discreto
e que consegue aquela que se chama às vezes de “a boa distância” (no sentido da
justeza do gesto). Para além de quaisquer elogios à realização do trabalho em
si, é preciso afirmar que se trata simplesmente (talvez junto com O Céu de
Suely) de um dos mais agudos e tristes retratos dos dilemas de completude
da classe baixa que se viu feitos no Brasil até agora – e isso se consegue justamente
por não fazer dos seus personagens exatamente “exemplos”, mas sim seres únicos. Toda
esta complexa resolução é o que não conseguem os dois outros filmes de eminente
inspiração sociológica que passaram na sessão (os dois, aliás, ladeando Crédito,
no que foi certamente uma das mais pesadas sublinhadas temáticas da curadoria
até agora). Tanto em Deus Lhe Pague, de Raylka Franklin (UECE); quanto
em Sobre Um Dia Qualquer, de Leonardo Remor (Unisinos - foto abaixo), o
grande problema é que, ao tornar seus protagonistas pouco mais do que “títeres
de um sistema”, o que
acaba acontecendo é que a grande força que parece oprimi-los é menos de ordem
sócio-econômica, e muito mais de ordem estética: é o diretor (e não o patrão ou
o capital) o verdadeiro mestre das marionetes que aprisiona os seus personagens.
É tão mais exemplar que isso se dê de maneiras esteticamente tão distintas quanto
uma latente ingenuidade de composição de imagem no primeiro; e uma sofisticação
elaboradíssima no segundo (com direito a plano final em grua ascendente sobre
a paisagem e a junção de ficção com – bonitos – momentos de animação). Pois fica
claro que o que atravanca os filmes é justamente um mesmo problema, encarnado
na afirmação de serem trabalhos que nascem para que se chegue aos seus planos
finais: se este é o grande ponto dos filmes, era de desejar que os planos finais
não se revelassem tão incrivelmente óbvios e totalizantes de uma mensagem que,
seja aprisionando ou pretensamente libertando (ainda que com ressalvas) seus personagens,
tornam os filmes em si exercícios unívocos de cinema marcados por um certo humanismo,
ao fim e ao cabo, bastante simplório (e, em pleno século XXI, não exatamente esclarecedores). São
de outra ordem bem distinta as questões que impedem os dois outros filmes da sessão
de decolar completamente a partir de suas propostas. No caso de Depois de Tudo,
de Rafael Saar (UFF), afirma-se desde o começo o desejo de uma afirmação do cotidiano
exacerbado (sempre focado no “quando nada acontece”) como fim em si. Há dois problemas,
porém: primeiro, uma articulação hipersignificante narrativamente do elogio deste
“cinema do pequeno” (exemplo: a porta se abre, plano fechado do personagem tocando
o cabelo na sua nuca, o outro personagem entra e diz: “você cortou o cabelo?”);
depois, a presença mesmo de Nildo Parente e, em especial, Ney Matogrosso, interpretando
estes dois “ninguéns”. A grande questão aqui é que, seja no elogio à poesia do
nada, seja na defesa política de uma temática como foco (a sexualidade na terceira
idade, aqui somando-se à homossexualidade), a presença destas duas figuras “performáticas”
muda o foco do que está na tela para o esforço feito em atingir esta sensação
de cotidiano e de verdade. Trata-se inegavelmente de intenções paradoxais, pois
ao invés de olhar os personagens, passamos a olhar como Ney Matogrosso simula
este personagem hiper-comum. Da mesma maneira, com seus closes e decupagem hipertrabalhada,
também não se deixa que o pequeno gesto seja marcante por seu natural surgimento
em cena, mas pelo gesto do diretor que chama a atenção para ele. Com isso, um
filme que parece afirmar o gosto pelo real cotidiano, acaba sendo muito mais sobre
a performance em atingir este efeito de real cotidiano – ambas questões que acabam
trabalhando absolutamente contra o que o filme mais parece prezar. Finalmente,
o filme Aquilo que Resta, de Raul Maciel (UFScar), se está longe de ser
o mais bem-sucedido dos filmes da sessão, é certamente aquele que levanta as questões
mais intrigantes – talvez de todo o Festival até agora. Pois se por um lado, o
filme tem imperfeições mais do que óbvias (a começar pelo trabalho dos atores
e da maneira de enquadra-los em muitos planos), ele também atinge resultados em
alguns planos ou articulações entre eles muito interessantes. De fato, é um filme
cujo trabalho com a idéia de precário ou de anti-espetacular em muitos níveis
nos faz pensar numa mistura de alguma pornochanchada brasileira dos anos 70 (e
não necessariamente das melhores) com algum filme de Straub. Se o resultado de
uma tal combinação não pode ser mesmo chamado de nada menos do que bizarro, também
é verdade que ele resulta de tal forma desconcertante, que muitas vezes consegue
atingir aquilo que parece ser o interesse do diretor: a emoção pura e simples.
Que tenha havido uma reação de algum escárnio estético da parte da platéia com
o filme é menos surpreendente do que significativo dos limites do campo da “beleza”
que se consegue delinear hoje em dia. Pois é fato que houve muitos belos planos
(nesta e em outras seções do festival) de muito maior obviedade e menos potencial
puro de significação do que vários dos planos “errados” de Aquilo que Resta,
que talvez represente a quintessência do cinema universitário no seu melhor: cheio
de dúvidas e incapacidades, mas explodindo de desejo de cinema. Agosto
de 2009 editoria@revistacinetica.com.br
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