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Programa 4: Daniel e as memórias
por Eduardo Valente

Sessões de curta são criaturas incrivelmente delicadas. O Programa 4 do FBCU nos recordou nessa quinta-feira o quanto essa afirmativa é verdadeira, e até que ponto não conseguiremos ser honestos à experiência ali vivida se passarmos direto para uma avaliação distanciada e autônoma dos filmes – simplesmente porque não foi assim que eles foram vistos. Tudo isso, num primeiro olhar, deveu-se principalmente a apenas um filme, colocado praticamente no meio da sessão: Cadê o Daniel?, de Luar Grinberg e André Sicuro (UFF). No entanto, se percebemos as nuances do andamento da sessão vemos que era menos um problema de relação com o filme em si, e mais do que veio em torno dele – e como veio.

Cadê o Daniel? é mesmo um destes filmes que representam um problema para os programadores de sessões: já a partir da sua primeira seqüência, de uma capacidade de comoção pelo humor rara (algo que se dá entre a performance da diretora-atriz Grinberg e a sua articulação na montagem), o filme gera um frisson na platéia (e especialmente em uma platéia “caseira” como era o caso no FBCU – tanto no sentido de que havia ali vários amigos dos realizadores e alunos da UFF, como também que a sensibilidade do filme caminha por lugares bem próximos dos desejos que conhecemos da platéia do Festival). Este frisson será em parte atendido pelo filme todo, na sua estrutura posterior que, se tem um quê do udigrudi admirado pelos diretores, também tem um tanto de uma empatia do choque que vem na linha de um Borat ou de um Pânico na TV (cuja maneira de editar vem especialmente à mente em uma utilização de câmera lenta e retrocessos na imagem). O filme como um todo não sustenta a força do seu começo, nem a felicidade de alguns momentos achados pelas ruas ou através da decupagem (como a aparição da cigana ou o desfecho), mas é sim uma experiência bastante rica ao trazer pro FBCU uma estética que tem algo de pré-universitário e típico do mundo das imagens contemporâneas (não por acaso, os diretores contaram no debate da origem quase involuntária do filme e dos seus começos no You Tube).

No entanto, existe o filme (bem interessante, como dissemos acima) e existe o seu efeito sobre o conjunto em torno dele. Com seu poder devastador de um petardo irônico e debochado, Cadê o Daniel? caiu como uma explosão no meio da sessão, atirando ondas que praticamente engoliram pelo menos os filmes à sua volta. Por isso, ao final da sessão, restou muito pouco na lembrança de Como Comer um Elefante, de Jansen Raveira (UFF), animação-piada de belos traços e algumas boas idéias (exibido antes de Daniel?, e apagado por ele); ou dos que foram exibidos logo em seguida, caso dos bem curtos Cru, de Fábio Allon (FAP); e Bomba!, de Lara Lima, Marcelo Lima e Renato Coelho (FAAP), cuja existência mesmo na tela pareceu quase etérea. Tanto assim que no caso do primeiro, um trabalho em Super8 pb que celebra nos seus créditos finais ter sido realizado em “tomada única”, não se pôde sequer julgar o mérito (ou necessidade) deste fato, tão fugaz foi a sua passagem no pós-Daniel?. Já Bomba! por sorte havia sido assistido em um festival anterior, o que realmente ajudou a perceber o poder das programações: se ontem ele passou um pouco a sensação de pequena vinheta fetichista das imagens nouvelle vagueanas (algo que está na sua origem, já que foi realizado dentro de um projeto de memórias do Maio de 68), ainda assim era possível lembrar sua dimensão profundamente inteligente sobre a transposição desse imaginário para o Brasil, com um tanto de humor sutil (e ontem não era hora para sutilezas), brincando com a inexatidão das traduções e das representações. Um belo e complexo filme nascido da despretensão, mas que provavelmente terá passado bastante desapercebido pelo Festival (no que não ajudou ter sido o único filme até o momento a não ter um representante presente aos movimentados e bastante esclarecedores debates pós-exibição que caracterizam o FBCU).

Mas talvez a maior prova do quanto Daniel? mobilizou a sessão desta quinta foi a maneira como ele conseguiu desviar o foco até mesmo daquela que havia sido a experiência estética mais arriscada e inesperada de toda a competição até aqui, o filme Darluz, de Leandro Goddinho (Anhembi-Morumbi), que abriu a sessão. Desde o início o trabalho exibe uma clara influência do cinema de Peter Greenaway (algo a ser repisado com clareza no uso da música de Michael Nyman no clímax do filme), o que independente dos gostos, é no mínimo um veio do cinema pouquíssimo visto antes como influente no ambiente do cinema universitário – inclusive por depender de uma corajosa predisposição para dominar elementos como o uso das multi-telas e, principalmente, de uma capacidade de retomar determinados registros de imagem complexos. Claro que poderíamos parar frente a uma recusa ao cinema de Greenaway e suas implicações (este redator, inclusive, não sendo exatamente um defensor dele), mas isso parece tolo neste contexto, onde é claramente mais importante afirmar a incrível ambição audiovisual do projeto (nisso sendo um exato oposto ao que propõe Daniel?, inclusive), e acima de tudo, a capacidade de dar corpo e sentido a estas ambições. Darluz é um trabalho de enorme maturidade que deve muito dos seus resultados a um trabalho com elenco admirável (a presença de sua protagonista é impressionante) e a uma capacidade que o faz ultrapassar em grande parte o cinema do seu inspirador maior justamente por conseguir carnavalizar bastante sua própria seriedade, num movimento de antropofagia que, se ainda parece por demais devedor de uma matriz, também consegue ir além dela. Goddinho foi um dos realizadores do FBCU que conseguiram, em suas primeiras obras, causar acima de tudo a curiosidade pelo que virá a seguir – e isso é, em grande parte, o que se deseja neste Festival.

Memória(s) em jogo

Não deixa de ser curioso que, numa sessão em que a relação entre um filme e a percepção dos outros tenha deixado claro como são frágeis os mecanismos de formação daquilo que se transformará em memória, esta tenha sido o fio a conectar os três últimos trabalhos exibidos. Dos três, o mais complexo até por ser também o menos “bem resolvido” foi O Arquivo de Ivan, de Fábio Rogério (UFS, de Sergipe). O filme de Rogério se dedica a um personagem importante da história da cinefilia e da crítica sergipana, mas deixa de lado toda informação biográfica que comprove ou enalteça este dado, centrando-se simplesmente na relação que este personagem tem com um impressionante arquivo de recortes e materiais sobre cinema num quarto de sua casa. Ao fazer esta escolha, Rogério deixa de lado qualquer possibilidade de um registro frio da importância do personagem e se entrega mesmo à desimportância da sua procura por sentido na vida ao compilar mais e mais informações que, como o próprio Ivan reconhecerá perto do fim do filme, não têm de fato muita serventia para ninguém mais além dele. O fascínio que este fato causa na equipe, aliado a uma certa confusão dos registros possíveis (uma claudicante acenada à metalinguagem do documentário, a busca do que exatamente registrar ali com suas câmeras e microfones), dão ao filme justamente todo o fascínio que o material original exibido por João Moreira Salles em Santiago ainda conseguia manter, mesmo com suas estetizações excessivas (que, como já discuti aqui, sempre me pareceram muito interessantes como problema, muito mais do que a solução deste problema pelo seu questionamento, que apaga mais ainda o Santiago, homem, do horizonte do filme). Afinal, a questão que Rogério e sua jovem equipe enfrentam é, no fundo, a mesma que Ivan explicita com seu (inútil) arquivo: para que serve isso tudo? Questionamento que o plano final do filme consegue ecoar com seu longo silêncio, e que dá ao filme, com todos os seus inúmeros problemas, uma enorme capacidade de emocionar e, especialmente, permanecer.

Os dois filmes que fecharam a sessão, Eu, Tereza, de Nathália Tereza (FAP-PR); e Baronesa, de Cláudia Afonso (FAU-USP), conseguem atingir resultados mais “bem resolvidos” como proposta, mas que confundem e emocionam menos. Isso se dá em parte porque, ao lidar com formatos e temas já bastante explorados nos últimos anos (a hiper-primeira pessoa no caso do primeiro; a memória manifestada em espaços físicos e personagens no segundo), as diretoras encontram soluções onde o cinema, se entendido como articulação entre sons e imagens, muitas vezes se vê bastante dependente de alguns dados diretos que afogam as imagens de sentidos (o que seria Eu, Tereza sem a narração off final, por exemplo?). Por outro lado, a impressão que fica é que os mesmos temas e formatos caminham numa tal relação com os espaços físicos que talvez o campo das artes plásticas, das instalações, acabasse sendo muito mais propício para tornar de fato o uso daqueles materiais uma experiência única e diferenciada. Como estão lá, na tela bidimensional do cinema, ambos são exercícios plenamente corretos, bastante pensados e estruturados a partir destes raciocínios, mas que não articulam este outro passo rumo ao desconhecido que, no final das contas, é o que complementa e dá uma outra dimensão a uma obra de arte de qualquer tipo. Entendemos perfeitamente a emoção que acometeu suas realizadoras frente ao confronto entre memória e tempo que passa em cada um dos seus filmes, mas nosso esforço parece ser mais este: o de entender seus sentimentos do que sermos tomados por novos sentimentos, só nossos. O mecanismo do "eu também..." (perdi meus avós; tenho lembranças ligadas a um lar) como elemento principal de identificação tem este limite, afinal: pois é o confronto com o outro absoluto (como Ivan - ou Daniel, por que não?) que nos desconcerta e marca de verdade.

Agosto de 2009

editoria@revistacinetica.com.br


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