in loco - 14o fbcu Programa
5: Sob o peso da película por Eduardo Valente
Se optássemos por seguir adiante com a análise das sessões pelo
viés quase temático que permite a curadoria do FBCU, poderíamos
sem problemas enxergar no Programa 5 da competição nacional algumas recorrências
que realmente atravessaram todos os filmes, caso principalmente da presença das
casas/apartamentos como lugares onde se manifesta algum tipo de mal estar de diferentes
fontes e significados (na maior parte das vezes, palco de uma violência latente,
em alguns algo mais misterioso). No entanto, curiosamente o que mais pareceu aproximar
os filmes foi menos essa sensação forte vindoura dos espaços/situações e mais
algo anterior mesmo a isso, inerente à própria produção dos trabalhos. É que,
por questões práticas de instalação de equipamentos na sala de projeção, o Festival
optou por concentrar nos dois programas finais todas as produções feitas para
serem finalizadas em película (embora tenha havido um filme projetado em digital
em cada dia destes programas, o próprio catálogo indica que o Festival esperava
uma cópia em película destes), reeditando assim, ainda que de maneira menos firme,
a separação que já houve entre as duas mostras (digital/película).
O
resultado desta opção/necessidade foi que, depois de quatro dias vendo trabalhos
pensados em digital na sua produção (mesmo que alguns tivessem origem em outras
bitolas), o que o Programa 5 mais passou foi uma curiosa sensação de uniformidade
de registro. Bem entendido: foram sete curtas muito diferentes entre si, de acordo
com os interesses de cada diretor/projeto. Mas havia algo que pareceu pairar acima
destas diferenças, principalmente por conta da variedade bem radical de cada dia
da mostra em digital. Podemos entender de onde vem esta sensação sem muita elocubração:
se a mostra digital apresentou todo tipo de origem de projetos (desde pequenos
rascunhos que se tornaram filmes, experiências eminentemente caseiras ou trabalhos
curriculares – não custa lembrar que o Festival não considera “universitários”
apenas os trabalhos feitos disciplinarmente dentro dos cursos, mas todo trabalho
realizado por alunos universitários), a produção para finalização em película
foi unanimemente mais “nobre” em origem (a maioria trabalhos de final de curso,
com alguns filmes realizados para concursos de produção externos). Esta nobreza
uniforme deu à sessão esta sensação de um “projeto de cinema” mais pensado como
tal, resultando naquilo que alguns colegas chamaram (com diferentes sentidos)
de “cinema de arte” ou até “cinema de direção de arte”. De uma maneira ou de outra,
depois da sensação de uma certa saudável anarquia reinante nos dias anteriores,
o Programa 5 realmente deu uma sensação de proximidade estranha com outros festivais
não necessariamente universitários – algo que não tem nada de errado, mas que,
no âmbito do FBCU, chamou a atenção para como a bitola ainda determina algumas
coisas sobre os filmes – pelo menos no cinema universitário, onde a possibilidade
de finalizar em 16 ou 35mm parece emprestar um senso de responsabilidade distinto. Dominar
ou arriscar, eis a questão Mas, como dissemos no começo,
claro que isso não igualou tudo que vimos, pois tivemos dentro deste sentimento
geral experiências bem diferentes. Basta ver, por exemplo, os dois filmes que
abriram a sessão: para além do uso de animais no título, Dez Elefantes,
de Eva Randolph (UFF); e Formigas, de Caroline Fioratti (FAAP) dividem
uma mesma sensação de violência iminente, onde os animais e os seres humanos adultos
encontram paralelos nos olhares infantis que originam as narrativas. No entanto,
as experiências narrativas de um e de outro não poderiam ser mais distintas. O
filme de Eva, já mencionado mais de uma vez aqui na revista já que circulou bastante
pelo Brasil e pelo mundo (ganhou prêmio em Locarno há quase um ano), opta pela
filiação a um cinema sensorial e elíptico, que mistura sonho, imaginação e experiência
do mundo como típicos do registro infantil. Trata-se de um exercício que às vezes
parece repisar um pouco demais este modelo, mas que no geral demonstra um olhar
bastante agudo e com domínio total daquilo que deseja propor.
Já
o filme de Caroline Fioratti tem mais marcas típicas dos primeiros olhares cinematográficos,
retomando uma pequena tradição de um cinema nipo-brasileiro (cujo recente Tori
é o caso que mais vem à mente, mas que tem em Chá Verde e Arroz, de Olga
Futtema, nos anos 80, uma matriz bem forte). Nesta tentativa de emular uma sensibilidade
japonesa no Brasil da primeira metade do século XX, Fioratti parece mais feliz
quando fica mais perto do registro naturalista, tanto de seus atores como de sua
câmera. O uso de grandes angulares ou de uma granulação noturna excessiva destoam
um pouco, chamando a atenção para algumas impossibilidades do filme, que sofre
ainda de uma perda de ritmo no meio dos seus longos 18 minutos. O resultado, embora
bastante agradável em muitos aspectos, mostra um pouco desta tentativa de correção
excessivamente nobre e comportada de que falávamos acima, tendo um pouco da sensação
de uma categoria um pouco em desuso no curta nacional, o chamado “curta de portfólio”. Sensação
parecida emana, de diferentes maneiras, de Quarto de Espera, de Bruno Carboni
e Davi Pretto (PUC-RS); e Cinco Minutos, de Ricky Mastro (FAAP). Embora
ambos pareçam perfeitamente ligados à sensibilidade de seus autores, e muito sinceros
como propostas de cinema, ainda assim perpassa os filmes um sentimento de demonstração
de capacidade de atender certos pressupostos de gêneros cinematográficos bem distintos.
No caso do filme gaúcho (foto abaixo), falamos do cinema de ficção científica
distópica/apocalíptica, que encena numa Porto Alegre vazia e cinzenta (com a fotografia
de tons verdes que melhor caracteriza o gênero) o perambular de uma série de personagens
isolados e, em geral, agressivos. Os
diretores demonstram uma notável capacidade de transitar por este gênero, usando
muito bem as externas e as composições de quadro (inclusive o filme tem algumas
das melhores imagens do Festival, cujo poder gráfico na captura de um momento
remete muito aos quadrinhos), mas ao final o filme transita por um exercício de
realização que, embora inerente ao espaço universitário (descobrir se é capaz
de realizar algo), também deixa uma leve sensação de falta de pessoalidade, mesmo
na competência extrema. Não é muito distinto do que se passa no filme de Ricky
Mastro, embora no registro de um cinema de arte voltado para as emoções humanas.
Há ali algumas preciosas idéias (principalmente os planos com o corpo na cadeira
de rodas), mas no geral o diretor passeia com excessiva segurança por um catálogo
de ferramentas de um cinema da elipse, do incompleto, da emoção contida, da incomunicabilidade.
Tudo muito correto, diga-se, mas sem um brilho mais firme e próprio. Em ambos
os casos, porém, os diretores parecem sair da universidade com um filme que comprova
toda sua capacidade de trilhar passos seguintes (inclusive em possíveis longas),
que torcemos apenas que arrisquem-se mais, até mesmo por caminhos que não dominem
tanto. Este
é, por exemplo, o caso de Hoje é o Seu Dia, de Thais Fujinaga (ECA-USP),
certamente muito menos bem sucedido como projeto do que os dois filmes acima citados,
mas que consegue atingir incômodos, até por isso mesmo, mais instigantes. A diretora
tenta aqui uma ficção voltada para os traumas e ressentimentos das relações familiares
(mãe e filha, no caso), que marca acima de tudo pela opção bastante frontal de
filmar um universo e duas personagens quase uniformemente desagradáveis. Não é
tarefa fácil, por mais de um motivo: para além da antipatia quase total do espectador
com o que assiste, existe ainda uma sensação típica de um cinema que coloca sua
realizadora vendo seus personagens de cima, com um tanto de sadismo – quem pensou
em Michael Haneke, acertou. Se no geral já não é exatamente um cinema que me agrade/interessa,
o filme esbarra ainda numa certa incapacidade de criar um clima uniforme ao longo
de sua duração. No entanto, em meio a todos os desacertos, não se pode negar à
diretora a criação de um ou dois momentos efetivamente pregnantes, através de
imagens e situações francamente doentias, onde o cinema de um Haneke dá espaço
a uma apreensão mais bizarra dos espaços e personagens que chega a lembrar alguns
bons momentos de David Lynch (revelando inclusive uma atriz extremamente lynchiana
na mãe interpretada por Lílian Blanc). Exercício desagradável e desigual, ainda
assim cativa e surpreende. 16mm ou não, eis outra
questão Os dois outros filmes exibidos no Programa
5 nos levaram a refletir sobre uma questão ao mesmo tempo externa e absolutamente
inerente a eles como projetos mesmo. Pois, se há dez anos o 16mm era o formato
absolutamente dominante na projeção do FBCU, talvez aqui neste festival ele tenha
visto seu canto do cisne. Por um lado substituído pelo barateamento do digital
no processo de produção, e por outro tornando verdadeira via-crúcis de finalização
(uma vez que abandonado pela maioria das empresas do mercado), o 16mm era o formato
prometido de exibição de apenas dois filmes na competição deste ano, ambos da
UFF: Amor de Família, de Leonardo Levis; e Holanda, de Álvaro Furloni
e Lígia Diogo.
Dentre
eles, a bitola acabou sendo apenas o formato de exibição do primeiro,
já que o segundo filme, mesmo tendo cópia em 16mm, acabou preferindo a projeção
digital por, entre outros possíveis motivos, um particularmente curioso: uma vez
finalizado em 16mm, os diretores quiseram mexer em determinadas coisas na montagem
do filme, algo absolutamente impossível para o formato de película pelos custos
e processos envolvidos. Com isso, preferiram finalizar uma outra cópia em digital,
a qual exibem agora. Holanda é um filme que resulta um tanto cindido entre
a capacidade de criar imagens bem fortes (tanto no momento de dentro da casa como
no final) e a necessidade de, por um lado, relativizar as mesmas através de uma
narração que dá ao filme um tom irônico e fabular que parece bem pouco relacionado
com o que vemos; e, por outro lado, hipersublinhar determinados andamentos de
sua narrativa, seja através desta mesma narração, seja com o uso de imagens que
re-posicionam momentos anteriores. É um filme que exibe olhares de cinema talentosos,
bastante pesados e pensados, mas que curiosamente parece sofrer de uma frieza
que venha justamente deste excesso de pensamento e conceituação sobre o trabalho
– que deixa os personagens, especialmente o da mulher, quase totalmente afogados
pela narrativa. Talvez,
como prenunciou o próprio Levis no debate, Amor de Família tenha mesmo
marcado a despedida do 16mm como formato de exibição no FBCU. No entanto, mais
do que a questão da inadequação da projeção (afinal, houve vários problemas com
o 35mm também nos dois dias, e sabemos que as projeções digitais ainda são tão
irregulares quanto as de 16mm), o que parece mais interessante notar é como o
ambicioso projeto estético do filme não parece, independente das crenças do diretor,
plenamente atendido pelo formato. Isso acontece por dois motivos, ambos com origem
no mesmo fato físico: a pequena dimensão do negativo/cópia 16mm, que acaba dando
limites de escopo aos seus resultados. Na imagem de Amor de Família há
um trabalho bastante arriscado de subexposição, o desejo de criar um escuro com
tintas por um lado naturalistas (já que recusa a hiper-iluminação que a película
muitas vezes pede em nome da “clareza”) e por outro lado absolutamente expressivo
nos contrastes das suas sombras – algo que, independente da lâmpada escura deste
projetor, é muito difícil que o 16mm dê conta com o nível de sutileza desejado.
Já no som, o problema é análogo: pensado nos mínimos detalhes numa dinâmica de
acumulações incômodas, o nível de cuidado do som do filme não encontra nos limites
do ótico do 16mm uma definição de acordo com o desejado. Com isso, o principal
problema que resulta é que Amor de Família, eminentemente sensorial na
sua fruição, acaba travado pelos limites mesmo de sua bitola, talvez a menos sensorial
delas (pelo menos na capacidade do espectador mergulhar num determinado sentido
a partir do uso de camadas de som e jogos com sombras). Ainda está lá na tela
toda a força das opções conscientemente misteriosas do diretor quanto ao uso dos
espaços/figuras humanas e da própria narrativa (existe uma?). Mas Amor de Família
curiosamente ao posicionar-se como este réquiem auto-assumido do formato do 16mm,
nos faz pensar que ele não vai deixar tantas saudades assim. Agosto
de 2009 editoria@revistacinetica.com.br
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