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Programa 6: Um balanço natural
por Eduardo Valente

Não deixou de ser adequado que o programa final da competição nacional do FBCU tenha sido aquele que, ao acabar tendo uma linha menos uniforme de conexão entre os filmes exibidos, permitiu que repassássemos por uma série de questões que se mostraram as mais pregnantes deste ano. É como se o festival se despedisse permitindo que víssemos algo de panorâmico sobre o que passou pela tela do Centro Cultural dos Correios e da Caixa Cultural ao longo desta semana. O único aspecto que ficou de fora nesta última sessão (composta por três filmes cariocas, dois paulistas e um paranaense), mas que absolutamente não pode passar desapercebido, é a incorporação de uma variedade de sotaques nacionais extremamente enriquecedora. Se há dez anos só havia quatro cursos de audiovisual no Brasil, todos no Rio e SP, agora podemos ver filmes praticamente dos estados mais ao sul e ao norte do país, indo do Rio Grande do Sul ao Ceará, com paradas por vários estados de resto pouquíssimo representados até mesmo em festivais não-universitários (caso de Sergipe e Santa Catarina, por exemplo). Se é verdade que parte da produção não vem necessariamente de cursos de cinema e audiovisual, e que esta proliferação de cursos da área não encontra de todo um reflexo realista na produção de fato, ainda assim é muito promissor poder ver um cinema jovem sendo feito com tanta variedade de origens regionais. Este ano, em meio ao predomínio ainda natural de Rio e São Paulo, chamou a atenção em especial a proliferação de produção do Paraná (quatro filmes, todos da FAP – que, como deixa claro uma rápida folheada na programação da mostra informativa, é hoje uma das principais produtoras de filmes universitários junto com as tradicionais escolas do Rio e SP, e com a Unisul); e a ausência de estados que vinham tendo filmes nos últimos anos, como o DF, Pernambuco e Bahia (cuja presença com títulos na mostra informativa, que mantém o mais que saudável hábito do FBCU de exibir em algum lugar todos os filmes inscritos, deixa claro que a curadoria da competição não ficou procurando compor com todas as origens apenas para fazer média, e sim que estas se impuseram nos filmes selecionados).

Afogados na contemplação e no sensível

Contemplação foi uma palavra citada em mais de uma ocasião nos debates do FBCU. O cinema universitário atual certamente mostra as marcas de uma determinada produção cuja matriz asiática encontra contato também com um certo cinema argentino e europeu, revelando-se muito mais presente como influência no cinema universitário brasileiro de hoje do que, aliás, na própria produção de curtas e longas fora da escola. Indícios de uma próxima geração de filmes? A ver.

No documentário, claro que a experiência mineira-cearense mais recente certamente também serve de paralelo e diálogo com filmes como Valparaíso, de Diego Hoefel (UFF). O X da questão, porém, num tema que tem sido bastante discutido também internacionalmente pela crítica é onde a contemplação se torna motivo em si mesmo, tão formatada em muitos sentidos quanto os modelos clássicos (como os “talking heads”). É um pouco o que acabamos sentindo do filme de Hoefel, porque nele a qualidade de uma fotografia bastante atenta aos quadros e, principalmente, ao uso do foco, acaba por muitas vezes colocando o olhar dos realizadores bastante acima de seus objetos. E aí, quando o diretor fala no debate de motivações e de temas que estariam por trás do filme, acabamos ficando com a impressão de que estes não estão presentes de todo no trabalho justamente pela necessidade da forma vir quase antes do seu objeto. No que importa, afinal, que os marinheiros filmados estejam fora de sua casa, num porto estranho e distante, já que o filme dá pouco espaço para que esta informação seja realmente relevante? Ficamos aprisionados pela lógica de uma seqüência bastante autônoma de belas imagens (e sons) que, claro, até deixam entrever questões a partir das fisicalidades de personagens, mas que parecem sempre ser um pouco sabotadas pelo extremo domínio da imagem. A atração do filme pela estética parece se colocar por cima de qualquer coisa que está em cena e a impressão é que este formato pode servir a qualquer tema, com filmes não muito diferentes – o que nunca é de todo um bom sinal. Afinal, especialmente no documentário, é sempre bom quando vemos do realizador o esforço em adequar também, de alguma forma, o seu olhar a tudo aquilo que está em frente à câmera.

O uso do desfoque, aliás, é dos índices mais hiper-utilizados recentemente para denotar a “imagem sensível”, como deixa perceber também a ficção O Presidente, de Luiza Favale (ECA-USP). É bem verdade que o foco é tema do filme a partir do momento em que este se centra sobre um menino que deseja precisar usar óculos, mesmo que não precise. Porém, a insistência na ferramenta ultrapassa bastante o que se possa chamar de uma necessidade narrativa e/ou temática. E o filme também vai voltar a um outro modelo plenamente em pauta nas discussões sobre as novas fórmulas de cinema da sensibilidade, que expõe um desejo do mínimo como fim praticamente único. Pois este cinema que, seja no documental, seja na ficção, parece querer fugir como o diabo da cruz da exposição excessiva do que quer que seja – algo que tem um mérito como impulso inquieto –, nos deixa perceber como determinadas ferramentas (as constantes e bastante arbitrárias elipses, os personagens que se recusam ao fabular – a mãe e seu “namorado” em especial, etc) vão se tornando muito rapidamente cerceamentos impostos por um novo formato.

Neste sentido é que Chapa, de Thiago Ricarte (FAAP) se revela especialmente bem sucedido, porque por um lado seu ambiente parece convidar totalmente a entrega à contemplação enquanto seus personagens, pouco afeitos a uma ficção de oralidade hiper-rebuscada, chamariam ainda mais esta ficção de silêncios. No entanto, há por parte do diretor a capacidade de perceber estas armadilhas que poderiam simplesmente colocar o filme dentro de uma determinada pauta. Ele consegue escapar das grades desta, não tendo por um lado o medo de urdir um drama que, por mínimo que seja (a espera pela filha), empresta ao seu personagem a capacidade de unir presença física a construção de personagem (num impressionante trabalho de contenção com emoção), o que se revela totalmente consciente pelo desfecho que, ao invés da fuga pela elipse, apela de fato para o uso da imagem de um personagem chorando – que é uma que parece especialmente rara neste cinema que foge de todo tipo de catarse emotiva. Na maneira como combina elementos de linguagem que certamente demonstram um conhecimento e apreciação deste cinema conteporâneo “sutil” com esta atração pelo drama da ficção construída como tal, Chapa apresenta de fato algumas soluções bastante interessantes para os dilemas de um cinema que, rapidamente, periga engolfar os realizadores em novos modelos formatados.

Gêneros e imagens anteriores

Um dos veios recorrentes na produção universitária diz respeito ao trabalho com as imagens anteriores criadas pelo cinema. Esta última sessão exibiu dois modelos bem distintos do que normalmente vemos nessa relação sempre um tanto fetichista com as imagens – curiosamente, ambos vencedores do edital do Forcine. Por um lado, o documentário Projeto 68, de Julia Mariano (UFRJ), se propõe a fazer uma exploração “sensorial” de todo um manancial de imagens sobre os conflitos políticos do ano de seu título, a partir do viés do espaço do centro do Rio de Janeiro, em oposição a imagens de uma parada militar de 7 de setembro recente. Se não há qualquer problema com a idéia, a questão maior é que a sensorialidade em si não parece ser o principal vetor explorado pelo filme, que faz questão de deixar claro uma série de relações e informações (seja pelo uso de legendas no filme, dos letreiros finais, de manchetes de jornal; seja pela sobreposição de sons a imagens que, se não são dos mesmos, criam relações da forma mais óbvia possível – como o diálogo de americanos sobre uma reunião dos militares brasileiros). Com esta opção, o que podia ser mesmo uma opção pelo sensorial fica com cara de grande vinheta informativa que reduz uma situação sócio-política complexa (para dizer o mínimo) em associações simples e fruição “musical”. Entre desejo e resultado, algo definitivamente não se completa, e Projeto 68 parece mais uma longa abertura de algum documentário televisivo, o que certamente ao era aquilo que seus realizadores buscavam.

Que Cavação é Essa?, de Luis Rocha Melo e Estevão Garcia (UFF) certamente estabelece relações mais complexas com as imagens que manipula e recria, a começar pela escolha nada óbvia de dois regimes de imagem eminentemente esquecidos ou rejeitados pela historiografia do cinema nacional – os filmes mudos “de cavação” (esquecidos inclusive por serem difíceis de se fazer ver, como o filme tematiza) e os documentários informativo-ufanistas dos anos 70. Dividido em duas partes com sentidos distintos e complementares, o filme consegue alguns momentos particularmente felizes (como a progressiva “perda de controle” no debochado churrasco da primeira parte; e a entrevista “no local” da segunda), mas no geral não consegue dar conta de sua longa duração, em nenhum dos dois momentos e, em especial, na soma deles. É o problema do fetiche da recriação de uma imagem: uma vez passada a surpresa e estabelecida a necessidade de trabalhar dentro deste regime outro, dificilmente se consegue manter o frescor e o efeito. Mas, que se diga que pelo menos uma coisa é absolutamente essencial que Cavação tenha permitido: que fique eternizada a figura de Hernani Heffner pelas mãos do cinema – em especial de um filme nada hagiográfico como este. Homenagem mais merecida, e adequada, impossível.

Já o autêntico cinema de gênero foi um dos grandes ausentes da seleção deste festival, visto que estava ressurgindo com bastante força nos últimos anos do FBCU. E que o único representante realmente indiscutível dele tenha sido Com as Próprias Mãos, de Aly Muritiba (FAP-PR), é provavelmente a demonstração de que a comissão de seleção teve mesmo dificuldades de encontrar filmes para exemplificar esta vertente (de resto presente na informativa com sessões de título Cinema Fantástico, Fazendo Gênero e Mundo Bizarro). O filme de Muritiba se insere no modelo do cinema de tortura e vingança, algo entre os recentes O Albergue e Jogos Mortais, com todo o moralismo de um MeninaMá.com. A questão é a mesma destes, em especial do último: tanto mais quanto queira incorporar elementos de humanização dos torturadores ou de evidenciar a violência como trauma generalizado, o filme não deixa de lado o fato de que depende do espectador como espectador participante que vivencie o desejo de desfrutar de um filme que estetiza o tempo todo a experiência da violência (aqui especialmente por uma câmera completamente incapaz de se posicionar frente ao que filma para além do banal “não vou mostrar os ferimentos”, que é especialmente ingênuo). Se isso foi o que de melhor o FBCU pôde mostrar do gênero, não é um bom sinal mesmo.

Agosto de 2009

editoria@revistacinetica.com.br


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