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Programa 3: Sob(re) o peso do cinema
por Eduardo Valente

Parece natural que, entre as questões que reaparecem a cada novo FBCU, a da metalinguagem seja uma das mais presentes. Afinal, o festival é, em sua maioria, formado por trabalhos realizados por jovens recém-embriagados, durante alguns anos, pela exposição à boa parte do que forma o tecido mais rico da História do Cinema, levados a (pelo menos na melhor das hipóteses) descobrir, pensar, avaliar e se identificar com alguns dos maiores filmes, artistas, movimentos, idéias que dão forma àquilo em que o cinema se transformou ao longo dos anos, e que resulta no que ele é hoje. Isso, se tem algo de profundamente positivo porque leva a uma série de reflexões importantes por parte dos alunos/realizadores, também pode ser perigoso e daninho na medida em que a descoberta e a paixão por determinados filmes/autores/movimentos pode se revelar um tanto sufocante para o jovem que, conscientemente ou não, termina se perguntando: “e o que eu ainda teria a fazer, a adicionar, uma vez que tudo isso já foi feito de tão incrível?” – numa reflexão que tanto pode levar à paralisia, quanto a uma produção que termina internalizando questões que, talvez, no fundo nem sejam as suas, afinal.

Esta é um pouco a sensação que nos deixa, por exemplo, Zeit to the Geist, de Diogo Faggiano (ECA-USP), realizador que já teve dois curtas exibidos no FBCU nos últimos anos, sempre chamando a atenção tanto por sua inegável habilidade com a linguagem do cinema, como por fazer uso de um manancial enorme de problematizações acerca desta que, por mais fascinantes que consigam ser em momentos (e sempre há momentos poderosos em seus filmes – e aqui não é diferente), acabam se tornando também um certo peso excessivo carregado pelos filmes (algo muito melhor resolvido no ótimo Copan, de 2007). Neste novo trabalho, Faggiano chama para si uma responsabilidade nada pequena: repensar audiovisualmente como as imagens do cinema de “contestação de linguagem” do fim dos anos 60 – tanto em suas vertentes européias como, principalmente, sua reencarnação no cinema marginal brasileiro – podem ser hoje potentes quando resignificadas por um jovem realizador para os seus próprios personagens e dilemas. É fato que, em momentos isolados, o filme encontra cenas e soluções fortes (tanto de imagem como principalmente de sua conexão incomum com os sons), além de relacionar-se com sua atriz principal com uma paixão que nos faz lembrar de alguns belos momentos de Godard/Anna Karina e Sganzerla/Helena Ignez. Mas no todo de seus longos 18 minutos, o diretor e o filme parecem sufocados pela memória deste cinema, que termina os vampirizando mais do que servindo.

Não parece mero acaso, aliás, que a sessão tivesse um outro filme de relação direta com um realizador ligado ao cinema marginal brasileiro. Quando retomam a passagem de Ozualdo Candeias por Curitiba, os três diretores de Hollywood (FAP-PR) realizam um típico filme de colagem que se revela ao mesmo tempo informativo sem ser didático e bastante engajante. Mas, de novo, há o peso da História, e a necessidade sentida de não apenas olhar para aquele cineasta/momento, mas de também “retomar” algo de sua estética acaba resultando no ponto fraco do curioso trabalho. O fato é que não é difícil de entender o quanto o cinema marginal, com todas as suas paixões e radicalismo, é atraente para um jovem que o descobre na faculdade. No entanto, é uma equação complicada a de solucionar em imagens a excitação por aquilo de incrível que alguns realizadores fizeram cheios de motivações ligadas a seu tempo, porque já se passaram 40 anos, o cinema se mexeu, o mundo mudou, e há que se pensar o quanto estes filmes precisam ser libertados do seu próprio peso de faróis.

Se trazer o espírito marginal a 2010 sem ser tragado por ele parece um desafio e tanto, talvez, inesperadamente (pois com certeza não parece nem um pouco estar no projeto do filme), um outro curta da sessão preste-se bem a algumas chaves de soluções possíveis. Falamos aqui de Fantasmas, de André de Novais Oliveira (PUC-MG/UNA) – filme que já foi objeto de um outro texto aqui na revista. O interessante de pensar neste curta dentro dessa perspectiva me parece ser perceber o quanto ele relaciona ao mesmo tempo sua consciência de uma série de questões envolvidas em sua realização (problematizando vários dispositivos do cinema corrente – como a câmera digital onipresente, o plano distendido de observação, a manipulação explícita da imagem), mas o fazendo a partir de uma mistura de leveza (através de um humor irônico e cortante) e enorme sentimento (e aí falamos não só do trajeto do personagem em torno de uma obsessão amorosa, mas também do quanto exalam do filme coisas como o espírito de grupo na realização ou o apego a um espaço geográfico-semântico). Com isso, e com sua radical independência de meios, há sim algo de marginal em Fantasmas – algo que, se não é de jeito nenhum o marginal segundo a cartilha do termo 40 anos atrás, pode sim ser aproximado a ele no que o move: uma paixão pelo cinema e pelo mundo que se deseja mostrar (palavra curiosa quando aplicada a este filme).

A falta de paixão, aliás, é exatamente o principal problema de um outro filme do programa, Os Desgovernados – Um Vídeo-Roteiro, dirigido em conjunto por 5 alunos da ECA-USP. O filme causou uma certa polêmica no debate pós-sessão, mas uma que soa um tanto deslocada frente ao que ele realmente é. Claro, essa polêmica é até certo ponto em muito desejada pelo próprio filme através de alguns elementos de agitação cuidadosamente colocados, mas a pretensa discussão sobre a ética documental que o filme se arvora levantar é de fato muito menos central para o filme que resulta do que a explicitação do desinteresse dos realizadores por qualquer coisa minimamente relacionada a ele. Claro que pode-se alegar que este desinteresse é parte formadora do filme (como o título indica), mas esta parece um pouco a saída mais fácil de afirmar a potência pela negação. O fato é que se torna um fenômeno bem estranho o quão facilmente os filmes da USP parecem enveredar pelo caminho de discutirem-se a si mesmos (e o funcionamento do curso através da realização dos filmes), só que ao fazerem isso acabem parecendo se embrenhar nos seus umbigos ao ponto de não perceberem que viram às costas a um mundo externo, o qual termina parecendo cada vez menos importar. Neste ponto, aliás, Os Desgovernados soa ainda mais equivocadamente auto-centrado se lembramos justamente do já citado Copan – Até Onde os Olhos Alcançam, que se solucionava bem melhor (principalmente através de uma auto-ironia muito fina) a partir de questões muito parecidas. E não é um bom sinal que o filme pareça nos deixar com menos ao seu final do que o apenas competente exercício de reportagem/jornalismo de um curta como Coutinho Repórter – nem que seja porque, simplesmente ao relembrar passagens de um momento do audiovisual brasileiro bastante profícuo, alguém como Eduardo Coutinho pareça ter muito mais noção do lugar de alguns dilemas na realização do cinema, e da força de alguns de seus problemas. Esperamos, talvez, que algum dia os jovens de Os Desgovernados se importem tanto assim com seus objetos ao ponto de perceberem que é dessa ética de fato que se faz o bom contrato do cinema (seja com seu público ou com seus personagens): o de que só se vai gastar o tempo precioso de cada um se realmente houver por trás do gesto um interesse sincero.

Um breve P.S.: sobre o sexto filme exibido na sessão, me parece que o mais adequado a fazer para tratar dele é simplesmente repetir, com paixão: “Mídia obsoleta! Mídia obsoleta! Mídia obsoleta!”

Agosto de 2010

editoria@revistacinetica.com.br


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