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Programa 6: Cinemas dos sentidos
por Eduardo Valente

Se na sessão de ontem podíamos indicar o fragmento como grande leit motiv ao longo dos filmes, a sessão 6 apostou numa palavrinha tão “contemporânea” quanto, ainda que bem mais atemporal por assim dizer: a sensorialidade. Falamos de atemporalidade porque é claro que, desde sempre, a percepção de qualquer obra de arte passará pela sensorialidade – tanto quanto pela racionalidade. Portanto, historicizar ou localizar no tempo uma idéia de cinema sensorial seria uma bobagem. No entanto, dentro das várias maneiras de se lidar com essa noção, é inegável que algumas são mais contemporâneas do que outras – e várias delas estiveram em exibição nessa sessão do FBCU. Antes de irmos aos filmes, porém, uma observação de ordem técnica (e sensorial) precisa ser feita: a projeção dos filmes em 35mm nesta edição do FBCU saiu enormemente prejudicada por uma péssima qualidade do som na sala dos Correios. Com isso, sendo o som sabidamente uma das melhores ferramentas para a construção da ligação sensorial do espectador com os filmes, é preciso dizer que estas observações sobre os trabalhos talvez deva ser considerada, antes de tudo, uma observação sobre alguns destes filmes vistos sob condições bastante desfavoráveis de exibição (cabe esclarecer: o Festival concentrou os filmes 35mm nas duas últimas sessões, sendo esta a primeira a mostrá-los).

Isso talvez explicasse a princípio porque, dos três primeiros filmes da sessão, o que mais causou efeito sensorial marcante foi aquele projetado em digital – Notívago, de Gabriel Dib (um aluno de economia da UFRJ que assina todas as principais funções do filme), mas me parece algo mais complicado do que isso, e nada técnico. O fato é que Notívago tem uma origem que, independente de ter sido narrada pelo diretor no debate, está plenamente impressa na tela: o filme nasce de um sentimento partilhado entre o seu ator (Matheus Nachtergaele) e o diretor, que se conhecem por acaso numa mesa de bar na rua, e saem pelo Centro antigo carioca, sob efeito do álcool, inventando uma performance de atuação (e desta com a câmera e o espaço). Mas, não se trata apenas de um impulso realizador naif: o diretor surpreende mais mesmo é pela manipulação deste material na pós-produção, onde uma mistura de sujeira e efeitos (tanto sonoros como visuais) são adicionados ao que já era potente, e resulta num filme de mergulho verdadeira, que acaba resultando mais pregnante que o exercício um tanto cerebral de Projeto Silêncio, de Bruno Caticha (FAAP), filme bem mais “pesado” (inclusive sendo resultado de um edital para além do curso universitário, o Prêmio Estímulo), e de inegável qualidade visual e sonora (e se esta última foi prejudicada no dia, é importante dizer que o filme foi revisto depois em DVD), mas cuja sensorialidade é de tal forma pensada e construída a partir de uma junção de conceitos e sacadas que acaba resultando frio, distante (e, por isso mesmo, não sensorialmente forte). É em parte o que também acontece com Noite Quente, de J. C. Oliveira (UFF), ainda que em outra chave. Aqui, também vemos o capricho de produção e de fotografia ao longo de várias cenas a princípio isoladas pelas ruas do Rio, numa noite de calor grande. No entanto, na medida em que o filme vai caminhando para um paralelismo entre personagens que leva ao seu desfecho dramático, ele vai murchando na medida em que as surpresas diminuem e os planos/cenas vão ficando menos enigmáticos. Resultam, nos dois casos, em belos filmes para que seus diretores assinem e mostrem como produtos dos seus cursos universitários, mas que respiram muito pouco de risco e real impacto.

Num certo sentido, esta falta de impacto também marca Sofá Verde, de Arno Schuh e Lucas Cassales (PUC-RS), mas pode-se argumentar que aqui ela é estudada. Afinal, neste filme que pode facilmente nos remeter aos primeiros Jarmusch, o que está em jogo é mesmo a repetição, as variações estudadas dentro desta, e o desfecho para o qual tudo se encaminha. É simpático, tem bons momentos (particularmente o plano do lado de fora do supermercado, mas também e principalmente o final), mas no fundo se entrega muito rápido, deixando boa parte de sua fruição passar exatamente como esperado. Que é um problema do qual, por exemplo, A Janela (ou Vesúvio), de Leonardo Amaral e João Toledo (UFMG) não sofre em nenhum momento, já que a maneira entre o apocalíptico/crítico e o jocoso com que o filme vai se construindo (e desconstruindo) parece sempre nos pegar desprevenidos. Há um prazer primal do cinema na fruição dos planos e da performance dos não-atores, numa mise-en-scène que faz pensar um pouco em Tati ou em Suleiman (ainda que em chave bem distinta destes), e no uso do som (principalmente os enxertos da TV). De fato, o filme apresenta-se como mais uma pequena pílula de um cinema imediato que vem sendo realizado por um grupo de amigos mineiros que tem, pouco a pouco, construído uma obra de interesse (e que aqui no FBCU já apresentou, por exemplo, Filme de Sábado no ano passado, e Fantasmas, neste).

Mas possivelmente os dois filmes que realmente ficarão desta sessão, pedindo revisões futuras (e principalmente reaudições) são os que, curiosamente, escolhiam um tema muito parecido, para trilharem caminhos quase absolutamente distintos: Duelo Antes da Noite, de Alice Furtado (UFF); e Balanços e Milshakes, de Erick Ricco e Fernando Mendes (UFMG). Ambos lidam com a relação entre um casal de crianças-quase-adolescentes, fazendo dos corpos desta idade um verdadeiro campo de batalha de emoções conflitantes, de atrações e repulsas, de medos e curiosidades. Talvez inesperadamente o mais físico deles é o filme mineiro – que é uma animação, daí o inesperado. O filme se utiliza muito bem da liberdade típica do desenho, o que ao mesmo tempo permite uma abstração a partir do mundo físico, mas também dá a possibilidade do filme se aproximar destes corpos tão novos de maneiras que talvez o jogo físico com atores impedisse (temos, por exemplo, um deles lambendo o chão, o que não seria uma imagem menos que perturbadora fora do registro animado). É bem forte a maneira como os diretores conseguem nos fazer sentir a vertigem da relação entre eles, e o filme transita num ponto entre o lirismo e a ousadia que é difícil de atingir e manter ao longo da duração – o que ele faz muito bem.

Duelo Antes da Noite tem uma veia muito mais etérea, por mais que os corpos ali em cena sejam de carne e osso. Isso porque o registro não-naturalista escolhido para as atuações e os acontecimentos em cena encontra no corpo dos seus atores uma saudável estranheza que coloca o filme num mundo à parte (não por acaso, aliás, a perambulação dos personagens parece se dar por um não-lugar, tão físico quanto abstrato). A diretora, que se exercita já há um tempo como crítica na revista Contracampo, certamente está mais que consciente de um certo encontro entre Apichatpong Weerasethakul, Gus Van Sant (na sua matriz mais próxima de Bela Tarr, especialmente Gerry – basta ver a foto acima) e Straub/Huillet que seu filme tenta fazer, e por vezes estas influências parecem (aí sim, conscientemente ou não) um pouco paralisantes. Mas há o suficiente de força e mistério na encenação e na presença dos atores (além do som, que parece ser realmente bonito, mas que esteve perto do incompreensível na péssima projeção) para que o filme desconcerte e atinja aquilo que, afinal, é a essência mesmo da tal sensorialidade no cinema: um estado de espírito diferente, o qual não encontra exatamente uma explicação racional, mas que toma o espectador pela força das imagens e sons criadas.

Agosto de 2010

editoria@revistacinetica.com.br


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