in loco - 16o fbcu
Seis filmes
Cobertura da Competição
Nacional do 16o Festival Brasileiro de Cinema Universitário
por Eduardo Valente
colaboração especial para a
Cinética
Como comentado no texto
mais geral de cobertura da mostra competitiva nacional, a
escolha dos seis filmes a serem tratados aqui não se deu por questões
intrínsecas de qualidade (“estes filmes são os melhores”). Embora
seja bastante óbvio que são seis filmes que me agradam, isso não
quer dizer que outros dos quais falei no outro texto não possam
me agradar individualmente até mais. A questão que me guia aqui
é menos essa de encontrar os filmes mais perfeitos, mas a de perceber
nestes seis filmes o que seus gestos criadores têm de bastante
incomum no panorama do cinema universitário atual – gestos que
indicam caminhos inesperados, às vezes absolutamente únicos, e
que me parecem, por isso mesmo, pedir que pensemos neles por este
caminho individual para talvez melhor entender, até por suas diferenças,
alguma coisa sobre o todo onde eles não se encaixam (ou, mesmo
quando se encaixam, apontam para outros lados).
Quando comecei a acompanhar a mostra, eu não tinha
um pressuposto de escolher seis filmes, sendo exatamente um de
cada sessão montada pela curadoria, mas tem algum sentido que
o formato final que me pareceu mais adequado tenha sido este.
Uma vez que este texto se movimenta no sentido de buscar a diferença,
o que menos se encaixa e/ou mais surpreende, talvez venha daí
essa necessidade de, a cada noite e a cada sessão, encontrar uma
“ovelha desgarrada”. Vamos a elas, então, sem mais delongas, na
ordem em que eu as vi no Festival, da sessão 1 até a 6.
* * *
Vó Maria,
de Tomás Von der Osten (FAP-PR)
O FBCU não foi o primeiro lugar onde vi Vó
Maria: ele havia sido exibido na Mostra de Tiradentes em janeiro,
onde fazia parte da curadoria de curtas, e onde ele foi um dos
19 filmes selecionados entre mais ou menos 600 enviados - tendo
ainda acabado por receber o prêmio principal da mostra, da mão
de um júri de críticos e professores. O motivo pelo qual eu acho
relevante contar isso tudo é que ajuda a contextualizar como o
caso de Vó Maria é mesmo uma exceção, pois trata-se de
um filme que tem essa qualidade bastante rara (e até certo ponto
perigosa) num trabalho universitário: a excelência que nasce da
precisão. No entanto, se eu realmente não acredito que essa precisão
precise ser buscada num espaço da experimentação e aprendizado
como imagino ser o da escola, eu também não acho que ela precise
ser renegada uma vez que surja naturalmente, como é o caso aqui.
Pelo contrário: vale a pena investigar um pouco porque ela aparece
neste projeto – especialmente, neste caso, porque ela me parece
nascer sim de um gesto originalmente tão experimental como
qualquer outro (nesse sentido eu até entendo o prêmio de Pesquisa
de Linguagem que ele ganhou no FBCU - embora não fosse aquele
no qual eu o encaixaria, com certeza).
A
primeira qualidade bastante óbvia da realização de Vó Maria
como projeto é a sua concisão: ele parece ter noção exata de que
sua força emana de uma determinada percepção que, uma vez alcançada,
precisa dar fecho ao filme. Por isso, ele dura enxutos 6 minutos
– e isso é, em si, uma lição importante para muitos curtas universitários
(mas não só). Não que “quanto mais curto melhor”, longe disso:
há curtas que precisam ter 15, 20, 25 minutos mesmo – só que o
difícil é saber entender quando isso é, de fato, uma demanda do
material. No entanto, Vó Maria não é forte apenas por ser
curto, é claro. Ele é forte principalmente por encontrar a maneira
exata, esteticamente, para dar corpo e imagem a um sentimento
bastante complexo: o do apagamento de uma pessoa pela passagem
do tempo; sua transformação, de uma figura com presença física
no mundo até se tornar pouco mais do que uma imagem sem um real
recheio de vida.
E
como ele consegue fazer esta operação? Primeiro, por um achado
de linguagem, na utilização de uma só imagem, através do seu recorte
ao longo do filme, em conjunção com o que se diz dela. Essa idéia,
por mais poderosa que seja, poderia resultar em mais um “filme-conceito”,
que chama a atenção para sua forma sem conseguir nos puxar para
dentro de si. Como Vó Maria evita essa armadilha é um desses
mistérios da arte: o fato é que os três depoimentos que compõem
suas partes possuem o tom exato que ele precisava – e é aí que
podemos dizer que o filme incorpora o risco (que pode ser o “do
real”, se assim desejarmos), mesmo em sua forma aparentemente
tão precisa. Porque se cada uma daquelas vozes, daquelas lembranças,
não compusesse a passagem sobre a qual o filme precisa se estruturar
(da memória viva para o esquecimento), de nada adiantaria a precisão
de sua estrutura, de seus movimentos e recortes dentro da imagem
ou da sua concisão. Então, no fundo, mesmo com sua precisão de
conceito e forma, talvez Vó Maria seja uma exceção menos
por alguma dessas qualidades, mas principalmente por este mistério
ao qual se arrisca quem se dedica a produzir uma obra.
* * *
Duas Fitas,
de Lucas Camargo de Barros e Felipe Miguel (FAAP-SP)
Esta também não foi a primeira vez em que vi Duas
Fitas, filme que já havia programado em um outro festival
(o CineBH, em 2009) – e sobre o qual, aliás, João Toledo já escreveu
aqui mesmo na Cinética. No
entanto, ao contrário de Vó Maria, eu não acho que suas
qualidades sejam tão claramente notáveis, nem que ele chame a
atenção pela sua forma precisa. No caso de Duas Fitas,
é o gesto mesmo que é incomum. Afinal, o que exatamente narra
o filme (de resto, claramente narrativo)? Não é muito fácil responder
essa pergunta, e talvez a maior qualidade de Duas Fitas
seja mesmo essa sua qualidade enigmática.
Paira
sobre o filme essa pergunta do que a câmera deseja conseguir nos
mostrar, qual sentimento de mundo ela tenta documentar (e, embora
possa parecer estranho usar este termo ao tratar de uma ficção,
há na maneira como a câmera do filme se coloca frente ao mundo
– quase sempre parada, frontal – algo de um impulso que nos remete
a um desejo de documentar algo; mesmo que seja um sentimento ou
talvez a sua própria posição frente ao mundo). Se essa frontalidade,
além de algo na qualidade da iluminação e do jogo dos atores,
pode fazer pensar no cinema de Michael Haneke, está ausente de
Duas Fitas um sentido de julgamento sobre os seus personagens.
Mesmo no gesto final do personagem principal (o único para o qual
se permite um corte por dentro da cena para chamar a atenção sobre)
existe menos uma ausência de ética, como ele pode ser percebido
de maneira mais superficial, e muito mais uma constatação da inutilidade
prática de certos rituais (no caso, o luto). Existe uma frieza,
mas não uma crueldade nem um sentido de desrespeito.
Esta
frieza, que gera um inegável mal estar na fruição de Duas Fitas,
é sua grande força. E esta força emana principalmente de uma qualidade
que é, afinal, a que o torna raro no panorama dos nossos curtas:
seu discurso sobre este mal estar não está montado, nem busca
nos convencer de nada. Se ele mexe com algo em quem o vê (e não
resta dúvida de que ele se arrisca bastante a inclusive dar espaço
para que não mexa), este é um algo meio sem nome, sem lugar, sem
definição. E essa aposta no indefinido da reação a ele é de onde
vem, justamente, a misteriosa permanência que o filme atinge.
* * *
Lugares Comuns que Nunca Sonhamos,
de João Gabriel de Queiroz (Unisinos-RS)
O fato de que “mistério” também possa ser uma
palavra-síntese para falar do que me chama a atenção neste filme
gaúcho certamente fala muito mais do meu gosto de cinema do que
revela algo de relevante sobre o panorama do audiovisual universitário
brasileiro. No entanto, o motivo pelo qual parece interessante
destacar esses dois filmes como experiências individuais é que
os gestos geradores desse tal mistério, e os efeitos que eles
causam, são claramente distintos e bastante únicos.
A
começar pelo fato de que, se Duas Fitas é um filme bastante
quieto, que usa a palavra com parcimônia e efeito pouco discursivo,
Lugares Comuns que Nunca Sonhamos encontra enorme prazer
em ver um ator/personagem falar. De fato, não seria nada absurdo
dizer que o grande motivo do filme existir é para colocar seus
atores em cena interpretando diálogos, interagindo. O filme pode
ser visto, neste sentido, como uma verdadeira experimentação sobre
maneiras diferentes de colocar dois (ou mais) atores dialogando,
e como filmar esses diálogos. Cena a cena, o diretor-roteirista
coloca seus personagens para conversar, e em cada uma delas (e
até trocando dentro de cada uma) parece escolher uma forma distinta
de posicionar a câmera (e a luz) para encontrar a performance
dos atores naqueles diálogos.
No
entanto, o curioso, incomum e corajoso nesta opção por um cinema
de atores e de diálogos, é que a palavra falada elucida muito
pouco do que realmente se passa em cena, e por isso é que o filme
retém esse tal mistério. Se por um lado parece que os personagens
perseguem uma história junto conosco, por outro há o sentimento
de que eles se referem constantemente a situações anteriores e/ou
fora de cena cuja importância nos escapa. O jogo, para o espectador,
se torna então um pouco essa busca de uma compreensão (impossível),
e ao mesmo tempo o prazer inegável pela encenação que emana dos
atores e de toda a estrutura incomum de câmera e iluminação do
filme. De uma forma ou de outra, estas opções corajosas pela experiência
e pelo inconcluso tornam o filme bastante único, e forte o suficiente
para se manter na memória ao construir seus climas e ambiente
particulares.
* * *
Rotina Matinal,
de Daniel Donato (Unisinos-RS)
Há
três momentos distintos nos 12 curtos minutos de Rotina Matinal,
e sua força vem tanto da individualidade de cada um deles como
da maneira como eles se sucedem no filme. No primeiro momento,
temos uma cena, em forma de um quase tableau, de um quarteirão
onde corpos de travestis se oferecem aos carros que passam. Ali,
chama a atenção a maneira de iluminar o espaço (misturando naturalismo
e artificialidade), assim como a dinâmica entre os corpos incomuns.
Depois, estamos confinados num carro entre um dos travestis e
seu cliente, e partilhamos tanto a carnalidade da situação como
uma série de outros sentimentos e momentos bastante sutis no entorno
desta (algo de desajeitado, de resistente, de carinhoso, de violento,
de transcendente – em suma, de um todo do que se faz o sexual).
Finalmente, temos o momento final, na rua, a volta à tal rotina
do título, que fecha com as outras duas partes um sentido bastante
amplo para essas cenas específicas.
Embora
haja escolhas discutíveis no filme (notadamente sua opção pelo
desfoque em alguns dos enquadramentos da cena de sexo), é bastante
forte sua dimensão física, carnal mesmo, que começa com a exposição
dos corpos na cena inicial, passa pelo contato entre os dois no
carro, e termina com essa idéia de uma rotina que passa pelo uso
do corpo. O último curta universitário que vêm à mente por tratar
o sexo com essa frontalidade (e aí não falamos tanto de enquadramentos,
mas principalmente da sua dimensão de esforço físico-sentimental)
foi Para que Não Me Ames, em 2008; lá, como aqui, se chamava
a atenção para um entorno enormemente pudico, onde o sexo encontra-se,
quando não totalmente ausente da perspectiva dos personagens,
no mínimo totalmente sublimado em cena (pela elipse, pelo romance,
pela interdição, etc). Por isso tudo, com suas imperfeições pontuais,
Rotina Matinal talvez seja mesmo o mais “diferente” dos
filmes no Festival. Bom pra ele.
* * *
Vuvuzelas de Madureira,
de Vitor Medeiros (UFF-RJ)
Até
naturalmente, o FBCU é um festival onde muitos dos filmes são
marcados por uma certa ambição desmedida, que parece misturar
o desejo de mostrar tudo que se aprendeu num curso de cinema com
apresentar suas qualidades para o “mundo do cinema” (contando
ainda com uma pitada daquilo que Cacá Diegues certa vez nomeou
como o maior problema do cinema brasileiro: a necessidade de tudo
dizer a cada filme, por não saber se/quando se poderá filmar de
novo). Nesse panorama é claro que chama a atenção um autêntico
“filme caseiro” como este de Vitor Medeiros– não apenas realizado
totalmente pela mesma pessoa, mas também filmado realmente dentro
de uma casa da sua própria família, documentando um evento tão
comum e banal como a reunião da mesma para assistir um jogo de
Copa do Mundo.
No entanto, não é apenas a despretensão do gesto
que se elogia aqui, pois tanto na era do digital existem cada
vez mais gestos e filmes “despretensiosos” (a maioria, claro,
munidos de enorme pretensão – a de encontrar toda a poética por
trás do banal), como a despretensão em si não garante qualidade
(assim como não há nada de errado com a pretensão, desde que ela
se realize). Não, o que interessa em Vuvuzelas de Madureira
é como sua despretensão se revela incrivelmente inteligente e
atenta em uma série de pequenos gestos efetivamente criativos
– de enquadramento, de montagem, e até mesmo, por que não dizer,
de encenação. Pois ao decidir realizar um “filme etnográfico”
dentro de sua própria casa, seria muito fácil para Medeiros cair
numa série de armadilhas, da fofura fácil até o instinto de proteção
aos próximos; da incapacidade de perceber o que havia de realmente
interessante a se filmar ali até uma auto-celebração vazia.
Vuvuzelas
de Madureira evita quase todas essas
armadilhas com louvor, e atinge esse resultado tão complexo: o
de nos fazer ver como se fosse um ritual absolutamente distante
algo que está tão próximo de cada um de nós. E, no entanto, ao
revelar as arbitrariedades e ridículos que marcam este (como qualquer
outro) ritual, não precisar cair na ironia ácida fácil. No fundo,
talvez essa seja a grande, enorme, qualidade do filme: a de conseguir
dar o passo atrás de quem busca se distanciar para melhor olhar
e perceber o que está logo ali ao lado, mas ao mesmo tempo não
precisar se colocar de fora ao ponto de perder o contato. Com
isso, o filme atinge esse duplo estatuto raro: ao mesmo tempo
que pode ser visto hoje, de perto, e se revelar ao mesmo tempo
caloroso e hilário; não é possível deixar de pensar como pode
ser visto em 2070 e mostrar muito do tempo e lugar em que vivemos.
* * *
Contagem, de Gabriel Martins e Maurílio Martins (UMA-MG)
É
um pouco dessa mesma qualidade rara de capturar uma parte viva
do tempo e espaço em que vivemos (algo que não se pode dizer de
muitos dos filmes feitos hoje em dia no Brasil) que também faz
a força de Contagem, com sua capacidade de construir pequenos
momentos, gestos, sons e imagens que parecem significar e conter
muito mais do que aquilo que compõem ou colocam em cena para contar
sua história. Que ele consiga isso através da ficção, e não da
observação antropológica, nos diz algo sobre a capacidade dos
seus diretores-roteiristas em estarem atentos não só ao que constroem
como, principalmente, ao mundo à sua volta.
No entanto, há um outro nível, talvez ainda mais
delicado de atingir, que se deve tocar ao falar do filme: trata-se
do prazer puro e simples da ficção – e particularmente da ficção
narrativa. É claro que se pode buscar referências diretas para
vários dos procedimentos do filme (da desestruturação narrativa
que remete a Tarantino à reencenação de um momento por outro ângulo
que faz pensar em Van Sant), mas quando tomamos por base o que realmente
estes gestos significam em Pulp Fiction ou em Elefante, percebemos
que o jogo de Contagem só traz em comum com estes filmes
(e talvez por isso mesmo sinta essa necessidade de estar próximo
a eles) de fato a verdade que aposta encontrar através da mais
pura ficção.
Nesse
sentido é que momentos como a cena dentro da loja ou a no alto
da laje parecem de fato compor o que é o coração de Contagem
(algo que, de alguma forma, estava já em Fantasmas, filme
tão completamente distinto realizado pelo mesmo grupo de amigos):
na primeira, temos uma cena movida somente pelo prazer de filmar
um rosto em close, capturando cada pequena inflexão que passa
por este (e o cinema deste grupo é certamente um cinema de inflexões);
na segunda, um jogo entre corpos, paisagem e enquadramentos que
os revelam aos poucos, junto (de novo) com as inflexões e expressões
das vozes. E é aí que, finalmente, percebemos porque Tarantino
e Van Sant (entre outros) podem realmente vir à mente: é uma mesma
crença no poder do cinema de, pela encenação, construir inapelavelmente
a sua verdade na tela. É uma aposta e tanto, que realmente vale
a pena ficar, se não como lição (que ninguém gosta disso, especialmente
estudantes), certamente como horizonte desejável de possibilidades
de expressão.
Agosto de 2011
editoria@revistacinetica.com.br
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