in loco
Filmando e aprendendo a filmar
por Eduardo Valente

O Festival Brasileiro de Cinema Universitário, em sua mostra competitiva de curtas brasileiros, se vê frente a um problema que é muito anterior a ele mesmo, pois é de fato uma questão fundante do que é e do que deve ser a produção artística num curso universitário de cinema (ou audiovisual ou multimeios ou imagem e som, como queiram). Afinal, desde sempre os filmes realizados por universitários enfrentam o dilema (insolucionável, diga-se, pois constitutivo desta produção) entre ser uma obra de arte autônoma ou o produto de um processo de aprendizado. Não sendo pequena, a questão se aprofunda e subdivide em várias outras, inerentes ao próprio cinema: a das fronteiras entre arte e indústria, entre expressão autoral e realização coletiva, entre condições de produção e idealizações. Tudo isso explode na tela do Festival Universitário a cada ano, o que, misturado com as paixões típicas da juventude, ajuda a entender quão fascinante é acompanhar esta mostra – que serve como um microcosmo, em muitos sentidos, das problemáticas típicas do cinema nacional (e, por que não?, mundial), de hoje e do futuro próximo.

Até dois ou três anos atrás, o Festival exibia na sua competição de curtas em película (que era separada da mostra de vídeos) toda a produção dos cursos. Ao perceber que cada vez menos fazia sentido separar os trabalhos por conta da bitola, o Festival incorporou à sua realização a problemática, sempre candente, da necessidade de fazer uma seleção – embora seja importante aqui a anotação de que o festival continua exibindo toda a produção inscrita, como forma de dar chance de exibição pública a todos os filmes. Mas, claro que há uma diferença de status e tratamento entre os filmes selecionados para a competição nacional (com pagamento de passagem e hospedagem para representantes, exibição em horário nobre com júri e premiação, sessões seguidas de debates com a organização, jurados e público, etc) e aqueles exibidos na chamada Mostra Informativa, numa enormidade de programas difíceis de discernir e acompanhar sem alguma recomendação ou motivo prático.

Se a questão dos critérios de seleção surgirá sempre, a cada festival que se realiza no mundo, ela se multiplica em dificuldade num festival cuja produção exibida é, por definição, experimental – não no sentido que o termo ganhou como um “gênero” do cinema, mas sim como experiência mesmo; de pessoas que dão primeiros passos, onde deveriam ser desejáveis o erro, o risco, o exercício. Como resolver, assim, o que é ou não “selecionável”? Trata-se de pergunta sem resposta possível, que os organizadores precisam enfrentar a cada ano da melhor maneira – ou seja, selecionando com a maior seriedade possível, mesmo sabendo que critérios serão sempre subjetivos.

Nesse sentido, vale notar que, embora eu tenha ido a apenas uma sessão da mostra informativa, e lá tenha visto dois ou três filmes que a meus olhos eram evidentemente mais consistentes (ou no mínimo de mesmo nível) que boa parte do que foi exibido na competição, o Festival Universitário deste ano optou por um seleção cuja programação de sessões apontou claramente para uma série de questões. Questões que, até pela repetição e variedade delas ao longo dos filmes selecionados, se revelaram bastante relevantes como espelho dos problemas/temas/modelos sendo mais usados e influentes nesta produção universitária. Por isso mesmo, ao contrário do que fiz no ano passado, me pareceu que neste ano o formato panorâmico de aproximação com os filmes da mostra, da maneira e na ordem em que foram apresentados, seria maneira mais enriquecedora de se aproximar desta produção – mais do que a eleição de favoritos e casos excepcionais (embora, claro, estes tenham existido). Daí que opto pelo formato do diário de festival, anotando pontos de interesse noite a noite num festival que montou programações bastante coerentes dentro de cada dia.

Primeiro dia: Dores do crescimento

Curiosa a opção do festival por começar a mostra competitiva por um programa que lidava, basicamente, com filmes cujos personagens principais eram crianças ou adolescentes enfrentando as dores das suas primeiras experiências (embora, neste contexto, a escolha do documentário Até Onde a Vista Alcança para abrir a sessão tenha resultado peculiar, podendo ser entendida como um gesto de igualar os pouco “educados” quilombolas de uma população local de Pernambuco a um olhar infantil – o que, se pode ser bonito pelo critério da inocência de olhar, resulta também um tanto condescendente). Digo curioso porque, em muitos sentidos, a experiência dos realizadores dos filmes do festival espelham estes “primeiros passos”, ou olhares, que seus personagens atiram ao mundo. Então, talvez tenha sido escolha particularmente feliz a junção de tema e realizadores – jogando ainda luz sobre uma idéia antiga nas discussões sobre a produção universitária: a de uma aparente ingenuidade bastante surpreendente nos olhares destes jovens adultos sobre o mundo.

No primeiro dia já sobressaiu uma constante destacada pela própria organização: uma maioria de tentativas de ficção (oito,sendo uma animação, contra um documentário). Fato também curioso, já que a ficção apresenta mais armadilhas aos primeiros passos, indo dos problemas mais básicos (como decupar uma cena, como dirigir atores, como resolver um roteiro de curta duração, etc) aos mais complexos (o que se tem a dizer sobre um tema). Não por acaso, no geral os realizadores que tiveram mais problemas em solucionar estas questões foram os que optaram pelos registros mais clássicos da ficção, enquanto aqueles que foram em busca das fronteiras da ficção com o documentário (Pintinho, de Rafael Saar – foto) ou com o experimental ([colorado esporte clube], de Fábio Allon) atingiram os resultados mais instigantes.

Vale notar ainda que a sessão apresentou três filmes já mais “maduros”, de alunos com algumas outras realizações e que já viajaram por outros festivais não-universitários pelo país, como Antes que Seja Tarde, de André Queiroz e O Vampiro do Meio-Dia, de Anita Rocha da Silveira. Os filmes de Anita Silveira e o de Fábio Allon, destacaram-se pela elaboração formal extrema, sendo onde o discurso sobre esta inocência mais se articulou como linguagem de cinema a partir de um olhar específico. Filmes como Luzes de Noel ou Pipa, por outro lado, se debateram de forma mais problemática com clichês de linguagem (palavra que voltaria ao festival, como veremos a seguir) e soluções dramáticas, sendo que o primeiro tinha claro aspecto de exercício. Antes que Seja Tarde e Em Flor também se resolviam por clichês, mas seus diretores se entregavam a estes de maneira mais frontal, aberta, quase apaixonada, tornando-os experiências agradáveis, mesmo quando claudicantes.

Segundo dia: O problema da imagem

Se no primeiro dia, a opção pela inocência de algumas imagens surpreendeu pela candura extrema, no segundo dia a maioria dos filmes já colocava em questão sua própria construção como imagens, algo que tem sido característica marcante do cinema de curta-metragem brasileiro recente. Os primeiros dois filmes da sessão, inclusive, eram protagonizados por personagens cineastas, envolvidos com problemas nas construções de suas próprias imagens (chamando a atenção a ousadia da proposta estética de O Rapto da Lua, ainda que o filme resulte menos feliz como solução dramática e de ritmo). A sessão passeou ainda por questões de construção de imaginários de seus personagens, com uma curiosa repetição temática da porta da rua como separação entre o mundo exterior e o espaço do indivíduo (presente em Coração de Tangerina e O Lado de Cá da Porta).

Como construção de universos, as duas propostas mais ousadas, sem dúvida, foram as de Sistema Interno, de Carolina Durão, e Cidade do Tesouro, de Celso Franceschet (outros filmes que, não por acaso, já passeiam por festivais de curtas nacionais). No caso do primeiro (foto), pela superposição de registros a serviço de um discurso sobre a relação entre imagens e pessoas-personagens que não cai na redução de significado fácil. No segundo, pela capacidade de construção de um universo de regras (estéticas, narrativas) absolutamente próprias, sem a necessidade de se explicar ao espectador, com a crença de que este "compraria" seu jogo ao longo de sua duração. Duas propostas bastante maduras de cinema.

O mesmo adjetivo poderia ser usado ainda para descrever os trabalhos mais “experimentais” da sessão, Praia de Botafogo, de Flora Dias, e Jarro de Peixes, de Salomão Santana (cujo A Curva foi um dos destaques do festival passsado). No caso de Santana, percebe-se a maturidade de um olhar próprio, que partindo de um mesmo gesto inicial frente aos materiais audiovisuais achados (found footage), consegue através da montagem e da resignificação dos mesmos construir alguns dos momentos visualmente mais marcantes do festival (e problematizantes também, tanto do gesto realizador como do gesto espectador). Já Flora Dias retoma, com a ajuda do parceiro LD Barbi (fotógrafo de vários filmes exibidos no festival), a imagem inicial do cinema brasileiro, criando um objeto audiovisual de complexas relações com este gesto fundador e sua possível “recriação” na atualidade. Ambos são filmes bastante conscientes de suas vontades de cinema peculiares, que lidam com a idéia de um mundo inundado de imagens que precisa olhar de novo para o significado mesmo de coletá-las (e exibi-las).

Terceiro dia: Dinâmicas (de) relações

Como no primeiro dia, a programação do festival optou por abrir esta terceira sessão com o único documentário exibido. No entanto, menos do que isolá-lo, como havia sido o caso então, aqui a opção funcionou organicamente ao apresentar Corpo de Bollywood, de Raquel Valadares. Aparentemente simples na forma, o filme conquista pela paixão que transborda da sua realização, criando, ao lidar com a indústria indiana de cinema, um fora de quadro constante: o cinema brasileiro. Neste sentido, talvez o filme seja o gesto mais politicamente relevante da seleção do festival, por colocar uma estudante de cinema na busca e descoberta de uma realidade pulsante em meio ao que deveria ser o seu objeto de paixão (o cinema), nem que para isso precise viajar ao outro lado do mundo. O filme tem uma pressa de dar conta de tudo, um desejo de tudo olhar, de virar a cabeça para o lado e tentar mergulhar mais e mais, que é contagiante, e é o que lhe dá força especial. Valadares mostra que o que diferencia o gesto documental do jornalístico não é nunca o formato, mas a motivação: não deseja informar, mas descobrir, desenhar uma dinâmica de relações que escapa ao seu próprio entendimento.

Serviu de belo começo para uma sessão que se debruçaria, afinal, sobre isso mesmo: as dinâmicas de relações. No geral, porém, as relações vistas pela ficção, não instigaram, seja no viés cômico (Maridos, Amantes e Pisantes), histórico-dramático (Partir), sensível (Espalhadas pelo Ar), ou sociológico (Ciclovia), por esquadrinharem quase sempre universos absolutamente controlados pelos seus realizadores a partir de discursos pré-existentes e pouco cativantes. Pareciam mais interessados em seguir fórmulas previamente vistas e entendidas do que em olhar por si mesmos. Neste sentido, o irregular Até Amanhã pareceu mais honesto (palavra sempre complicada), até mesmo no uso da sua câmera, por vezes feia, por vezes exagerada, mas sempre grudada nos personagens, nos fazendo querer descobrir, junto com ela, o que viria a seguir. Pena que a conclusão traga um estranho discurso de oposição entre sinceridade-sensibilidade e pulsões carnais-sexuais, numa construção bastante conservadora de arco ficcional.

Até por isso, com certeza a ficção realmente forte da sessão veio do nada convencional Para que Não Me Ames, de Andradina Azevedo e Dida Andrade. Ao abrir com uma cena de sexo frontal, o filme já se diferencia de um quase sempre pudico cinema universitário brasileiro. Mais do que o choque pelo choque, porém, o que os diretores apresentam é um universo marginal (em todos os sentidos) extremamente afetuoso, através de um cinema que mistura registros sem medo de fabular sobre a dureza de uma realidade. Apesar de algumas escolhas de câmera bastante estranhas, o filme ainda conquista por uma capacidade de filmar os corpos selvagens (principalmente de alguns não-atores) com uma rara mistura de respeito e falta de pudor. Curiosa omissão na premiação do júri oficial, que afirmou se pautar por ousadia e rigor. Talvez fosse o filme que mais apresentava os dois elementos em acordo.

Quarto dia: Fazendo gênero

Certamente a sessão mais obviamente temática do festival, o programa quatro é o que mais explicitou o desejo de exercitar e aprender a dominar uma determinada linguagem, através da exploração do cinema de gênero, algo que vem crescendo em importância no cinema universitário brasileiro – o que, ao mesmo tempo que faz um certo sentido com a discussão constante sobre a perspectiva (sempre prometida e adiada) de uma cinematografia industrial brasileira, tem um lado estranho justamente pelo cinema de gênero ser o menos estabelecido dos formatos desta dita indústria. Curioso também foi ver que dois dos exemplos mais radicais deste abraço ao exercício do “bem fazer” (Romance 38 – cujo prêmio do público parece um bom sinal aos seus realizadores – e Cada Um Por Si), extremamente influenciados pelo cinema de gênero pós-Tarantino, venham do curso da ECA-USP, em gerações anteriores celeiro das turmas mais radicalmente “autorais”. Mudanças de curso?

A sessão foi composta ainda por dois exercícios formais extremamente radicais na sua entrega a um desejo de “copiar”: Nosferatu e Watchmen, que até nos nomes indicam serem menos releituras do que re-feituras. Parecem gestos iniciais típicos, de quebrar o brinquedo para ver como ele funciona – nada contra, aliás, um gesto inicial como qualquer outro. Certamente mais promissor, nem que seja pela estranheza de suas origens, do que o “cinema policial de discurso social” de Noite Amarga, filme bastante exemplar, em mais de um sentido, do atual estado de coisas carioca. Mas, de fato, o único filme entre os de gênero que ousou (e como!) propor um universo próprio foi O Coelho – Prólogo: Páscoa, de Daniel “Sakê” Madureira (foto). O filme faz pensar num David Lynch anterior, que ainda partia dos clichês dos gêneros para tentar trafegar por dentro deles, ao mesmo tempo em que quebrava as fronteiras entre narrativa e clima puro, além de criar um universo de regras completamente próprias. Tentativa absolutamente estranha ao clima universitário (ainda mais por se propor como primeira parte de uma série – seja ela real ou não), O Coelho foi certamente desconcertante.

Talvez não tanto, porém, quanto o gesto curatorial de inserir no meio desta sessão Noite de Serão, filme que certamente poderia ser classificado como de “não-ação”, numa reapropriação de um universo beckettiano no nada alegórico espaço de uma rua de subúrbio carioca. No entanto, o gesto, que poderia resultar fascinante (mesclar a idéia de não-ação com a dos filmes de ação), acabou sendo bem prejudicial à fruição do filme, que não conseguiu encontrar clima para suas tentativas no meio da sessão. Donde vem a pergunta: será que uma curadoria também deve ter espaços para ousar desta maneira, se o eventual erro recai menos sobre ela do que sobre o filme? Mais um problema de difícil resposta...

Quinto dia: Ser ou não ser – visível

Dia de grandes temas: finitude, invisibilidade, solidão, reconhecimentos aos olhos dos outros. Se o festival vinha nos apresentando uma maioria de dias sob a égide dos pequenos gestos e registros, seja pela ingenuidade ou pela circunscrição dos problemas do cinema em torno de si (gêneros, imagem, etc), os filmes da quinta sessão do festival sofriam de um perigo completamente diferente: o de sufocar o cinema sob o peso de seus grandes temas. E claro que nem todos escaparam do perigo, na maior parte das vezes vitimados por uma ingenuidade frente a estes temas (que certamente soa menos encantadora do que a daqueles que olhavam para os primeiros gestos infantis), ou ainda pelo peso um tanto solene da auto-importância excessivamente segura. Dentre os filmes, o que respirava melhor ao lidar com estes problemas, não por acaso, funcionava sob a inspiração (de resto, um pouco forte e sufocante) do cinema de uma cineasta cujo assumido desejo de ingenuidade talvez seja sua maior força: falamos de O Cineasta, a Menina e o Homem-Sanduíche, de Daniella Saba, muito pautado pelo Eu, Você e Todos Nós, de Miranda July.

Mas, houve exceções, e bem fortes. Não por acaso a sessão exibiu, afinal, o filme que mais prêmios ganhou no festival (Os Sapatos de Aristeu, de René Guerra) e um outro já exibido no Festival de Cannes (A Espera, de Fernanda Teixeira). Mas não são os prêmios nem seleções que importam, e sim os gestos realizadores de extremo controle (surpreendente, em se tratando de primeiros filmes em universidade) na proposição de ficções que se constroem absolutamente pelo domínio das imagens (e sons). Mais do que isso, são filmes que, frente a seus personagens, percebem a força das presenças dos corpos frente a uma câmera: no caso de Aristeu, filme que lida exatamente com o corpo como espaço de construção, a oposição entre atrizes de porte como Berta Zemel e Denise Weinberg e os “corpos selvagens” dos travestis; no caso de A Espera, na convivência entre o corpo que se pensa (do ator, mas do personagem também) e o que simplesmente é (a força considerável da presença de um cachorro, corpo selvagem por natureza).

No entanto, mesmo com a força de suas construções ficcionais, nem um nem outro conseguiriam, no que concerne o simples poder de uma presença, se impor frente ao personagem real de Solitário Anônimo, de Débora Diniz. Absolutamente hipnóticos, filme e personagem se confundem e se tornam um só, num trabalho de enorme força como gesto documental por vários aspectos: as questões morais e éticas que suscita – mas não ofende; a discussão sobre a sorte e a oportunidade do realizador documental; mas principalmente a simples constatação da força de um rosto humano como esfinge, como problema sem solução, respeitado como tal pela realizadora. O filme (mais um que tem circulado bastante), sem dúvida, mais impactante do festival.

Sexto dia: Personagens em movimento

Depois de vários dias de fusões de gênero e discussões, o penúltimo dia do festival se debruçou sobre uma problemática essencialmente ficcional: a do personagem e sua construção. De um lado, a aposta no indefinido e na passagem, na idéia (não por acaso quase sempre ligada a personagens jovens) de que a experiência é mais definidora e importante do que a construção ou a reflexão; do outro, o confinamento na constante reavaliação e construção de si mesmo. Filmes calcados no momento (seja ele uma experiência sensorial mais do que ficcional, como em Quando o Tempo Parar; seja nos tempos curtos da experiência “banal” de Poliedro ou Brincos de Estrela); e filmes calcados na repetição (Outros Modos de Sentir, Obsessões). Uns arriscando-se num cinema quase inefável de tão etéreo; outros ao aprisionamento do hiper-pensar. No meio deles, dois filmes sobressaíram – ou seria mais exato dizer, em torno deles, já que foram o primeiro e o último da sessão (muito justamente, aliás). Unindo os dois, o fato de partirem dos opostos, para chegarem a um cotejo bastante rico entre estes pólos da noção de personagem.

Começando pelo começo: Corpo no Céu, de Luisa Marques, parece abraçar de saída e incondicionalmente a ficção do fluxo: personagem muito jovem, fragmentos de cenas, sensações e relações, aposta na experiência do corpo no mundo mais do que na construção de significados sobre a pessoa/personagem. No entanto, bem calmamente e com grande sutileza, o filme vai urdindo aquilo de que parecia querer escapar: as relações (familiares, principalmente, porque a família está no centro do interesse do filme) e, principalmente, um entrecho – que não se explicita como tal, mas que está ali, hiper-presente e importante. Uma viagem, uma despedida, que, ao construir um trajeto para a personagem que parecia pura experiência, ressignifica e potencializa tudo que estava sendo visto. Neste gesto, a diretora revela uma crença no poder da ficção que emana mesmo das coisas e se iguala a elas: nem maior nem menor, cinema de experiência e de acúmulo.

Do outro lado, no final da sessão, Engano, de Cavi Borges. Desde o começo, marcado (e marcante) pela proeza técnica e de linguagem, e aparentemente definido por isso, o filme vai muito aos poucos se deixando dominar pela fisicalidade dos personagens e de sua relação com os ambientes. O que parecia exercício distante e frio de construção vai ganhando aos poucos (mas incontornavelmente) a força da simples presença dos corpos no espaço, do trafegar por estes espaços. Ao final, efeito semelhante ao do filme de Luisa: a ressignificação, a potencialização, o drama enfim. Trajetos absolutamente opostos, mas pontos de chegada semelhantes: a força da ficção cinematográfica atingida pelo equilíbrio entre construção e presença no mundo. Não são pequenos feitos.

Sétimo dia: O que (ainda) podem as imagens?

No sétimo dia, dizem, o Senhor descansou. Pois no Festival Universitário, no sétimo dia o olhar cansou. Não necessariamente o dos espectadores (embora possivelmente também, afinal são sete dias de sessões bastante longas), mas a julgar por este último dia de competição, o do cinema como um todo. Não que seja um cansaço impotente, desinteressado, de jeito nenhum: falamos é de olhos que já viram muito, mas que querem (re)descobrir o que ainda se pode ver.

Não por acaso foi uma sessão que pareceu questionar as possibilidades de formatos, como se buscasse um outro olhar, que às vezes se quer pensar novo (animação em computador, câmera de celular), às vezes se assume velho para nesse gesto achar a expressão possível (super-8, filmes de arquivo, chroma key em vídeo radical). Nessa busca do olhar, resultados e perspectivas opostas: por um lado, o aprisionamento – seja ele de ordem existencial (Moradores do 304); ou moral (Sete Vidas, Tempestade!) – acaba fazendo com que a forma nova pareça bem envelhecida. Do outro lado (em A Bela P..., de João Marcos de Almeida), a liberdade pelo (ultra)passado, pelo kitsch, que, ao não se levar nada a sério, encontra afinal o frescor (ainda que eventualmente auto-indulgente).  

No meio destas tentativas, duas chamam a atenção, por motivos quase opostos. Em Desejo de Mim, Diogo Faggiano e Íris Junges parecem querer redescobrir a imagem a partir do zero: cada seqüência, uma regra; cada sentimento, um registro. Um filme de amor que parece perguntar: o que é – e o que pode ser – um filme; e o que é – e o que pode ser – o amor? A lamentar apenas que às vezes as elocubrações teóricas possíveis de se ver aí resultem mais interessantes do que sua concretização em imagens. É quase o oposto de Os Boçais, de Lufe Bollini (foto), que é pura construção de imagens potentes. Bollini parece não se perguntar nada sobre o que pode ou deve ser uma imagem, pelo contrário: afirma o tempo todo que as imagens podem ser o que quiserem e assim serão. Mais importante (e difícil) ainda: cria um universo onde paródia e crença andam de mãos dadas, com raro talento para a construção de clima, de ambientes, de decupagem. Bollini é um herdeiro do bandido de Sganzerla: se não se pode fazer nada, a gente avacalha. Mas, com enorme talento audiovisual.

* * *

Curioso (e coerente) trajeto este do festival: de um primeiro dia marcado pela ingenuidade de olhar (de personagens e realizadores), ele vai desaguar num último dia saturado, em busca de um outro olhar possível. No meio disso, o cinema universitário do país esquadrinhado é possível representação do dilema mesmo do jovem realizador frente ao universo do cinema: pode-se tudo, mas será que ainda se pode algo? Respostas, nos próximos capítulos – do festival, com novos alunos; destes alunos, fora das escolas.

Agosto de 2008

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