Febre do Rato, de Cláudio Assis (Brasil, 2011)

por Cezar Migliorin

Agarrar-se no Recife, no mundo

1 - O plano é longo, o poeta está em cima de uma mesa e, mais uma vez, interrompe os festejos para centralizar as atenções e ser ouvido pelo grupo.  Durante o poema, como sempre de qualidade duvidosa, ele se aproxima da câmera, ganhando do filme a mesma atenção que os amigos lhe prestam. Entretanto, algo perturba a centralidade e importância do poeta. Preso em seu lábio, um resto de comida, um gomo de laranja talvez.

O resto, ali, não é uma metáfora, mas apenas mais uma das formas de A Febre do Rato interromper qualquer idealização ou pureza do artista/revolucionário. O resto na boca é com um rasgo naquela imagem, um rasgo nesse personagem tão caro ao cinema político; personagem que contra tudo tenta unir política e poesia – não, essas não são coisas demais para um homem só!

2 - Embaixo de um viaduto, em um espaço que parece ter sido desprezado pelos poderes que constroem os arranha-céus e as favelas, o poeta escava um pequeno território. É preciso ocupar o espaço, deixar alguma marca com cartazes, sons e poesias lançadas no meio do Capibaribe. O gesto inglório é pleno de força e tristeza, ambas incarnadas em fragilidade nos corpos embriagados de revoltas, drogas e desejos.

Que inimigo é esse teu? Militares, como no final do filme? Certo, eles são o retrato da disciplina e da ordem, estão distantes do caos que alimenta o poeta, do erro e da transformação constante. Mas, o inimigo do poeta e de seu grupo não tem tanta ordem, é muito mais difuso, está nos prédios e na vida sóbria, em toda parte. Contra ele é preciso ir para o meio do rio, para o espaço mais amplo, e fazer do poema declamado um grito inglório e desesperado.

“Tenho medo de mim mesmo”, diz Zizo, encarnando o inimigo onipresente que é enfrentado com todas as armas de vida. Revolucionário, revoltado, apaixonado, poeta. Sua fala, longe do ideal, também rasgada, não é capturável; parece antes ambígua, atravessada por uma tristeza, por um limite, por impossibilidades. Sua poesia política, antes de ser um discurso contra um inimigo localizável, sobre este ou aquele poder, é, antes de tudo, uma prática de vida que se faz com uma rede de afetos, desejos e violências, na desconfiança dos homens que não sabem rir.

3 - Contra a febre, o primeiro remédio é a água. Água de poço, água de piscina Tony, água para curar ressaca, água de ofurô tropical, água do Capiberibe. Eneida traz uma desarmonia a mais para Zizo. É esvaziando o ofurô de concreto que a mudança de foco em sua vida sexual se efetiva, para se reencher mais adiante, e, uma vez e muitas vezes, terminando por incorporar a própria Eneida enquanto Zizo desaparece em outras águas; aquelas do rio em que seus barquinhos do jornal "A Febre do Rato" já haviam navegado. Aquela que é espaço vazio, amplidão onde se está, ao mesmo tempo, no centro da cidade e protegido dela. Em algum lugar haverá uma água para garantir o sexo, a poesia ou a morte.

4 - Depois dos créditos, a câmera escorrega pelo rio, como escorrega tantas vezes. Ali, ainda não há personagem a ser seguido, mas cidade, música e poesia. Prédios e favelas - obras inseparáveis  - e a poesia. No final do plano, um choro de criança nos leva para uma outra imagem que agora desliza em terra firme; entre becos, passamos ao lado de uma mulher grávida e chegamos ao poeta.

5 - Produzir um filme pode ser entrar em um mundo de projetos, pedidos, acordos, burocracias, diretores de marketing, prestações de conta, empresas de petróleo, poderes tristes. Esse universo faz com que a produção seja frequentemente vista a partir desse esforço para o qual Zizo teria pouco talento. Mas, se só isso fosse, perderíamos o que interessa na produção: a invenção de um ambiente estético. Não se trata de algo que está nos bastidores, mas na imagem mesmo. Que grande produção é essa que consegue fazer esse filme e mantê-lo em uma sala de cinema comercial por algumas semanas? Admiráveis invenções dessa produção, colocando esses atores juntos, essa música, essa montagem. Junto a todos os travellings, corpos e sonoridades, há um ambiente, um efeito sensível do filme que não é propriamente um problema de linguagem, mas um engajamento com as cenas com a existência do filme, que é o que parece primeiramente convidar o espectador. Um filme de produtor.

Se quisermos, talvez seja na constante coexistência de um rigor e de uma displicência, de uma apuro técnico e de um descuido meio bêbado, que esse engajamento se revela. Enquanto os atores parecem frequentemente livres, excitados, embriagados, a câmera é segura, delicada, precisa. Se há beijo, há língua.

6 - Minha história é não ter história. Comer de um tudo. Zizo, o poeta – obrigado Irahndir! é um personagem trágico, cercado de afetos e pessoas que se calam para ouvir seus poemas ou simplesmente para seguir pateticamente um líder frágil. Personagem hiper-potente encantado pelo mundo, pelas velhas, pelo afeto dos outros, pelas possibilidades eróticas e de chão de Pazinho e Vanessa. Um casal do caralho! Nessa frase, naquele momento, importam menos os dois caralhos do casal do que o fato de serem um casal.

Zizo encontra Eneida. Novos afetos aparecem. Ele recebe críticas, se encanta. Belo corte para Zizo no meio do quadro, escrevendo sozinho em silhueta. Novo encontro, novos limites, outras conexões – o luxo da cidade. Eneida no meio do quadro, quase na mesma posição que Zizo no plano anterior. A conexão entre eles está feita. O desejo não será só por um corpo; não há romance ideal. Mas há algo que se efetiva na intensidade entre eles, com o filme. Isoladamente eles se masturbam – ela, que já é dona da poesia; ele, buscando o gosto e o cheiro da menina.

7 - Zizo é o personagem que tudo pode e nada pode. Sua liberdade é intensa, mas o desejo de um território – com a amante, com a cidade – é algo que lhe corrói. Talvez por isso ter medo de si próprio. “Protect me from what I want”, como dizia o trabalho de Jenny Holzer. Proteger-se onde? No mundo! O rio é sujo, mas a sujeira é anticorpo, anticorpo que dá força aos corpos. No luxo da cidade, o barulho dos tamancos das lavadeiras, o gosto das putas. Proteger-se de si é um mergulho nas intensidades e experiências do mundo; essa parece ser a encantadora potência e fragilidade de Zizo. Em todo lugar há uma diferença e um risco.

8 - Ao fim, o rio e os ratos, a casa vazia, a mãe sozinha, a amante velha sozinha, Eneida sozinha, e um filme habitado por nós; mais um pedaço de mundo para nos agarrarmos.

Julho de 2012

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