in loco - cobertura do É Tudo Verdade

Fengming – Memórias De Uma Chinesa
(He Fengming), de Wang Bing (China, 2007)
por Fábio Andrade

Três horas de vida

Ver Fengming é uma experiência irrepetível - e isso pouco tem a ver com a dificuldade de acesso ao filme. É irrepetível pela grandiosidade de seu próprio projeto. Em primeiro lugar, por uma questão estrutural: se Além dos Trilhos, filme de estréia de Wang Bing, convida o espectador a passar 9 horas observando a decadência de um parque industrial chinês, Fengming pede que ele se dê às três horas de um quase ininterrupto depoimento de sua personagem-título. Em segundo, pelo próprio peso das palavras ditas: Fengming, hoje uma senhora, passara 30 anos de sua vida sendo perseguida pelo governo chinês; no processo, morrem seu marido, sua mãe e vários anônimos que vivem situações parecidas. A diferença de Fengming é que sua presença em tela é símbolo tanto de sua sobrevivência, quanto das dores de sua vida passada.

Se a experiência de ouvir uma pessoa contar 30 anos de sua vida em três horas é, para muitos, insuportável, em Fengming ela parece ser o único caminho possível. Pois ao construir um filme praticamente inteiro alternando entre um plano aberto e um plano médio dessa fala (além disso, temos apenas um plano de caminhada com a protagonista, dois ou três recortes de seu apartamento, e o derradeiro plano-seqüência que fecha o filme), Wang Bing faz, em seu segundo longa-metragem, uma afirmação política de contundência ímpar. A escassez de cortes em um depoimento de uma só personagem coloca em crise as múltiplas relações do tripé realizador-personagem-espectador que sustenta um documentário.

O primeiro longo plano de fala (pois não é, aparentemente, uma conversa) do filme gera uma situação, em si, extraordinária: sem que o espectador perceba, a luz que, pela janela, iluminava Fengming vai se esvaindo. Quando nos damos conta, a dona da voz que ouvimos é apenas o reflexo dos óculos que imergem na escuridão. Quando a impossibilidade da visão é quase total, Wang Bing interrompe o depoimento e pede que sua personagem acenda as luzes. Esse primeiro longuíssimo plano é um profundo auto-questionamento da realização documental, pois uma vez passados vários pontos de corte possíveis, a relação do espectador com a personagem fica cada vez mais densa, mais dependente dessa duração.

Cada corte, a partir dali, ganha o peso do mundo, pois traz sempre a sensação de interromper uma relação outra que só o tempo seria capaz de construir. O desejo de abolir o corte não vem como questionamento dos direitos de intervenção do documentarista, mas sim da percepção que cada novo segundo estabelece uma nova relação, e cada segundo cortado é uma relação que deixa de nascer. No caso de Fengming, esse contato ainda ganha uma dimensão política mais acentuada, pois o filme permite que uma pessoa que teve sua vida transformada pela impossibilidade de se expressar possa, enfim, falar. Mais do que uma história que precisa ser reafirmada, Fengming trata sobre a liberdade da fala e, conseqüentemente, a liberdade da escuta.

Pois existe, no filme, um contracampo que nunca vem, mas que se coloca justamente nas escolhas que moldam a obra: o próprio Wang Bing (foto ao lado). E a maneira escolhida por Bing para construir seu filme é reveladora, pois sublinha a incrível capacidade narrativa de sua personagem. Mais impressionante do que a história de vida de Fengming é a maneira como os acontecimentos saem de sua boca, quase sem pausa alguma (mesmo que os poucos cortes entre os dois ângulos de câmera escondam os silêncios), em um fluxo de pensamento de uma linearidade devastadora. É uma habilidade que sobrevive à barreira da língua justamente por ser tão inteira, por passar pelas décadas sem um copo d’água, um respiro mais profundo ou uma hesitação. É um encanto que não está tanto em sua fala, mas em sua maneira de falar, pois história está tão fortemente marcada na memória de quem a viveu, que uma câmera em frente ao sofá é suficiente para fazê-la sair, inteira, entre um dia e uma noite.

Ver Fengming é uma experiência irrepetível, porque é construída para ser assim. A transparência da linguagem de Wang Bing conta com essa impossibilidade de reencontro, pois os questionamentos internos que se dão na projeção são como rasgos irremendáveis. 

Março de 2008

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