in loco - cobertura dos festivais
Ferrolho, de Taciano Valério (Brasil, 2012)
por Raul Arthuso
Fazendo
a roda girar
A primeira sequência de Ferrolho tenta
mergulhar o espectador na cultura de Caruaru a partir do time
local, o Central. Embrenhando o protagonista nas ruas, no estádio, com
uma câmera documental, o prólogo do filme existe
para revelar um clima local, uma sensação de estar
e pertencer a um determinado lugar, mas ao mesmo tempo retirar
dele o rótulo de "regional" e fazer de Caruaru
um micro-universo - com uma ênfase, não por acaso,
na segunda parte da expressão. Nos anos 1990, Baile
Perfumado operava idéia semelhante em relação
ao sertão, tornando-o um local-universo - o sentimento
do mundo passa pelo local e o desejo de olhar o encontro entre
Lampião (o local) e o cinema (o universal). Lírio
Ferreira e Paulo Caldas utilizavam então a referência
pop - a música manguebeat - e o cinema de aventura para
trespassar a "cor local" e colocar Pernambuco na rota
das questões mais gerais - um estar no mundo. "Estar
no mundo" é uma expressão-chave do cinema brasileiro
há pelo menos dez anos, pois liga-se diretamente com o
gesto político que boa parte dos filmes propõe como
resposta.
Uma parte da produção ficcional tem apostado no
diagnóstico da doença, imprimindo nos filmes um
mal-estar, marca forte de parte da produção dos
anos 2000. É preciso marcar o mal estar como dado fundamental
e torná-lo matéria básica do filme (Baixio
das Bestas; Árido Movie; No Meu Lugar) ou, em outra
via, fincar bandeira do lado do campo e partir para o deboche
por vezes ressentido (Quanto Vale ou é por Quilo?).
Outra forte corrente da produção vê no
mal estar atual um espaço de justificativa de certa imobilidade
(A Alegria; Os Monstros; Mulher à Tarde), onde
o mundo joga sempre contra e só é possível
então, como postura, afastar-se, recolher-se e abandonar
o barco antes do naufrágio inevitável. Numa via
fetichista, os deslocamentos viraram uma metáfora para
a procura de seu lugar no estar no mundo (Estrada
para Ythaca, Ainda Orangotangos, A Fuga da Mulher Gorila),
que em geral tem terminado no prazer pela própria viagem
e o trânsito. No fim das contas, os diálogos com
os sintomas do mal estar no mundo levam a gestos políticos
também sintomáticos.
Aqui, o sintoma vem antes da doença: o bandido Ferrolho
invade a casa das pessoas em dias de jogo do Central, ouve a partida
pelo rádio enquanto cozinha seu jantar e, após a
refeição, defeca na casa, "deixando sua marca",
como profere o protagonista ao longo do filme, referindo-se ao
seu maior desejo existencial. Com um gesto tão forte, o
filme suspende uma possibilidade de superação ou
um outro tipo de diagnóstico do mal estar no mundo. Contudo,
Ferrolho se volta mais uma vez a apenas marcar a doença.
Traz para o filme os membros da família do marginal e,
desdobrado o número de personagens, restam apenas certos
desejos reprimidos e recusas constantes. Os quatro membros da
família de Ferrolho estão à deriva,
mas diferentemente da vertente em trânsito do cinema brasileiro,
eles não tem qualquer impulso de deslocamento. Nem esboçam,
por outro lado, uma reação de reclusão e
afastamento do mundo. Debatendo-se contra o desastre, as personagens
de Valério se aproximam das de Cláudio Assis - não
por acaso o nome mais ouvido no filme, de um falso jogador do
Central, craque do time, cuja rádio repete em todas as
transmissões. Como em Amarelo Manga e Baixio
das Bestas, a verocidade de suas atitudes é manifestação
desinibida de desilusão e um atestado raivoso do estado
da coisas. A verborragia e sujeira do filme neutraliza em alguma
medida o instinto de reação latente nas personagens.
Elas rodam em falso em relações descompassadas pelas
força de suas pulsões, o tempo todo declaradas.
A imagem do barro é, então, muito forte. Em alguma
medida, ela remete à narrativa mitológica da criação
do homem a partir do barro primordial. Porém, a verdadeira
metáfora está nas performances das pessoas que são
dragadas por esse barro molhado, sem forma, girando inescapavelmente
na matéria mais primal, a massa sem intensão, a
não-vida e, por último, um duplo do excremento que
Ferrolho deixa como sua marca no mundo. A essas pessoas resta
apenas revolver o barro e ficar na merda. O que nos leva de volta
ao gesto político do filme e seu significado simbólico
dentro da ordem social. Seu atrevimento tem uma diferença
crucial em relação a outras intervenções
da marginalidade no jogo social, pois a mecânica de seu
crime cria uma cápsula para o confronto direto. Ferrolho
invade casas sabendo que elas estarão vazias, avisado por
seu contratante cuja relação de dependência
nunca é esclarecida ou problematizada - inclusive na cena
mais extensa de encontro dos dois, eles jogam uma partida de xadrez,
um cotejo que remete ao intelecto e ao jogo social como lastro
simbólico, assim como à vida e morte do embate bergmaniano.
Uma vez na casa, Ferrolho não depreda nada, não
rouba nada de relevante de se considerar um prejuízo simbólico
ou financeiro, não escrotiza que não um prato ou
um lençol com suas fezes. Seu "dispositivo" se
alinha em alguma medida à pesquisa do cinema de Marcelo
Pedroso, por exemplo, em que a mediação evita o
contato direto e o confronto se transforma em ataque com as armas
que se tem na mão. Se há alguma possibilidade de
confronto, ela se dá apenas no seio da família,
porto em que a deriva das personagens faz do choque uma catarse.
É muito distinto do marginal paulista, do malandro carioca,
do mito do cangaço, em que a violência ao outro é
direta. Ferrolho colabora com o estado de vigilância protagonizado
pela classe média-alta cujo alimento é a paranóia
midiática da televisão, surgida no filme em um breve
momento, inferindo um impacto social bastante reduzido do bandido.
Sua ação - infantil sob diversos aspectos além
das possíveis aproximações psicanalíticas,
reduzidas ao "cada um tem seu vício" dito pelo
protagonista - mantém a roda girando.
Janeiro de 2013
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