olho no olho - virtual
Liberdade para os personagens
por Eduardo Valente

Foi um ano de curiosas tendências no curta-metragem brasileiro, a se julgar pelo que dele pudemos ver na Mostra Brasil do Festival de Curtas de São Paulo – dona daquela que certamente é a programação mais abrangente do formato. Embora o filme mais forte do ano, no sentido estrito do termo, tenha sido um documentário (Solitário Anônimo, de Débora Diniz, já por mim comentado aqui), foi um ano de surpreendente predominância das ficções, numerosas e com vários bons representantes. Nas mais interessantes entre estas, foi também um ano em que poucos filmes trabalharam com a noção de narrativas clássicas (começo, desenvolvimento, fim) ou de personagens entendidos como resultado de um trabalho conjunto entre filme e ator com base em uma construção regida por uma lógica (geralmente de fundo psicológico-histórico) que o filme explicite. Não por acaso alguns filmes marcantes como Ocidente, de Leonardo Sette; O Som e o Resto, de André Lavaquial; ou Saltos, de Gregório Graziosi, trabalham nos limites entre a ficção e a não-ficção, construindo personagens a partir de corpos “reais”. As exceções talvez fossem Tira os Óculos e Recolhe o Homem, de André Sampaio (um dos únicos filmes brasileiros fortemente fincados em um momento histórico); Esconde-Esconde, de Álvaro Furloni; e Engano, de Cavi Borges.

Nas outras ficções marcantes do ano, uma mesma sensação constante de que desejavam retirar sua potência de elementos outros que não a idéia de um trajeto narrativo e de personagem. Mesmo filmes como Os Sapatos de Aristeu, de René Guerra (que repetiu aqui a sua trajetória premiada no Festival Universitário, levando o prêmio Revelação, que garante a realização de um novo curta para o ano que vem); Depois das Nove, de Allan Ribeiro; ou Corpo Presente: Beatriz, de Marcelo Toledo e Paolo Gregori, que desenvolvem um entrecho minimamente narrativo, não podem ser considerados como tendo aí seu maior interesse. Outros, como Dez Elefantes, de Eva Randolph; Vestida, de Juliana Rojas; e Décimo Segundo, de Leonardo Lacca, manipulam de forma ainda mais consciente a relação entre presença física e tensão, privilegiando acima de tudo a construção do plano (como unidade de espaço, no caso do filme delas; como unidade de tempo, no caso de Lacca). Em todos eles, a sensação comum de que seus atores-personagens nos marcam mais pela sua latência, pela simples presença no quadro do que por algum interesse pelos seus trajetos narrativos. São filmes bem distintos em trabalho estético e objetivos, mas que atingem uma mesma sensação, a de que a potência daqueles personagens em cena pode construir por si só um espaço e tempo para além deles, a ser intuído mais do que compreendido.

Não foi por acaso, dentro deste panorama, que os quatro filmes que mais me chamaram a atenção sejam os que mais radicalizaram esta proposta de trabalhar com os personagens em cena. Já vistos em festivais anteriores, Convite para Jantar com Camarada Stalin, de Ricardo Alves Júnior; e Areia, de Caetano Gotardo (foto), partem de pressupostos bem distintos. No primeiro, um trabalho com não-atrizes, sem diálogos (elas se falam em um momento, mas não ouvimos), em planos que são unidades espaço-temporais isoladas e onde a noção mesmo de ficção e de entrecho vai se dando pelo acúmulo e pela complementação. No segundo, o exato contrário: um trabalho bastante baseado no trabalho de atores (em especial, de Malu Galli, para quem o filme foi pensado) com diálogos bastante construídos, com vários planos e contraplanos, planos abertos e planos detalhes, mas onde a decupagem clássica, mais do que criar uma unidade, parece expandir radicalmente o espaço-tempo (entre cada corte, mesmo simulando uma continuidade, sentimos que podem passar-se anos ou dimensões – imaginário, memória, presença). Em comum nos dois um prazer pela composição de quadro apuradíssima, e claramente hiper-controlada, e pelo desenho de som que chama a atenção para si como elemento autônomo.

Entre as novidades vistas em São Paulo pela primeira vez, Booker Pittman, de Rodrigo Grota; e O Dia em que Não Matei Bertrand, de Luiz Carlos Oliveira Junior e Ives Rosenfeld. Os dois, desde o título, colocando em primeiro plano os seus personagens principais: no caso de Grota, como objeto; no caso de Junior e Rosenfeld, como sujeito em primeira pessoa. Se Booker Pittman tem considerável força por si só, com seu trabalho de câmera que lembra o de um Robert Altman, ele ganha ainda mais quando pensado em conjunto com Satori Uso, filme anterior de Grota. São quase irmãos siameses: o primeiro era uma ficção que se fingia documentário, sobre um personagem inexistente; o segundo trata de uma figura real, só que o pensa como imagem de ficção, potência de narrativas que nunca urdirá, muito mais do que como informação. Só que tudo que no primeiro filme parecia indicar uma certa perfumaria distante (foto hiper-rebuscada, metalinguagem “chique”), agora se transmuta em um cinema do plano de tal potência que faz repensar o filme anterior por um motivo simples: explicitar que o Jim Kleist daquele filme (cineasta imaginário que realiza o filme dentro do filme) sempre foi o próprio Rodrigo Grota, e não uma criação deste. Assumindo aqui a primeira pessoa, ele revela a força do seu olhar.

Bertrand trabalha num registro do esgarçamento, lidando sempre com a tensão entre a erupção ou não de uma narrativa a partir deste não-personagem (algo explicitado no impressionante plano final). É um filme que utiliza o jogo do claro-escuro como pista dos objetivos de um trabalho que, mesmo fincado fortemente num realismo de registro (a notar, principalmente, o escritório de contabilidade e o plano externo), resulta incrivelmente etéreo e internalizado. Apesar de nos dar a ver um homem e seus entornos, sem maiores apelações para imagens abstratas, ele parece nos jogar o tempo todo para dentro de um imaginário, de uma forma de olhar o mundo a partir do simples estar nele.

Movido pelo enigma intrinsecamente cinematográfico em que consiste a força da presença nas telas das figuras humanas destes quatro filmes, de maneira absolutamente independente das idéias clássicas de construção de personagens e de narrativas, me interessou procurar seus diretores para que eles pudessem falar dos seus métodos de trabalho, tanto com os atores (ou “presenças”, como creditado em Camarada Stalin) como com suas equipes, e também da sua própria concepção, nos filmes, da idéia de personagem. Abaixo, as idéias que eles me mandaram de volta por email.

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Rodrigo Grota, diretor de Booker Pittman

Para mim, o Booker, enquanto personagem, era apenas um vestígio. A idéia era representar o que foi o Booker não em um sentido literal, objetivo, e sim encontrar possibilidades em uma camada mais distante, nebulosa. Não seria algo figurativo; seria sim uma abstração. A direção, nesse caso, se torna indireta. Escolhemos o ator, e pedimos que ele agisse à sua maneira, respeitando um pouco do que ele leu e ouviu do Booker.

Na fase da montagem, queríamos estar diante de algo novo, que não tivesse sido concebido no roteiro. Assim, escrevemos alguns tratamentos para ajudar o pessoal da direção de arte e da produção (principalmente no que se refere aos cenários), e também os executei no set parcialmente. Na montagem, principalmente a partir do segundo corte, dispensamos boa parte do que havia sido pré-concebido e começamos a investigar novas relações entre planos que inicialmente não possuíam valor algum. Essa nova "hierarquia" das imagens nos permitiu trabalhar com planos que sob um primeiro olhar seriam descartáveis, quase um "lixo" do material bruto. Nesse sentido, o filme acabou ganhando nova dimensão a partir do que existia à sua margem.

Você pode imaginar que praticamente não houve ensaios nem repetições de tomadas – o filme foi feito na base do 1 pra 1 e da câmera escondida (no cabaret chegamos a ter 2 câmeras). A intenção era ter contato com um material quase inédito na montagem, algo fresco, novo, que não parecesse com aquilo que filmamos. Algumas cenas que estão no filme (como o final, com o estúdio de jazz e o Booker em silêncio) estavam no roteiro. Algumas imagens-sínteses também (corredor, plano do booker na natureza). O resto é ambiência do cabaret e a própria vida desse lugar recriada por amigos que toparam ser figurantes. De ator mesmo, só o Edson Montenegro (Booker) e a Cléo de Páris (sua amante). Pedíamos apenas para as pessoas agirem como se estivessem em um cabaret e íamos roubando alguns momentos.

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Caetano Gotardo, diretor de Areia

Quando eu comecei a escrever o Areia, eu tinha na cabeça a imagem de uma praia, a imagem de uma mão apertando o peito e a barriga de um homem e a imagem do rosto da Malu Galli (ou, mais precisamente, a vontade de escrever algo para a Malu, que eu tinha visto várias vezes no teatro). Tinha também a intenção de trabalhar com o universo da memória, e nesse sentido ficava ecoando para mim a frase de uma amiga minha, Natacha Dias, num texto escrito por ela em um processo teatral. A frase era: "E eu estou sempre lembrando, e eu estou sempre esquecendo. E isso vai ser passado quando eu disser". Essa frase e a vontade de trabalhar com a Malu se juntaram na personagem Alice. Ela foi se constituindo para mim a partir desses dois elementos iniciais: as imagens da Malu em cena que eu tinha na cabeça – o que dava à personagem desde o início um rosto, um corpo, uma voz – e essa relação com a memória como algo que resulta tanto do que se lembra quanto do que se esquece.

Juntando a personagem com as outras imagens que já tinham se formado para mim, comecei o roteiro descrevendo Alice sentada na areia da praia apertando o peito e a barriga de um homem. Assim, o personagem Pablo surgiu primeiro como presença de um corpo ao lado de Alice. Essa mão apertando um corpo também determinou para mim um interesse em trabalhar no filme com a idéia do tato, do ato de pegar algo com as mãos (o que me parecia reforçar a relação entre presença física e lembrança, que no filme se misturam, de certa forma). Pablo então foi se constituindo a partir da relação de Alice com ele, a partir do olhar dela. Percebi que, enquanto ela transitaria entre as sensações do presente e da memória, enquanto ela se esforçaria para reconstruir uma situação ao mesmo tempo em que essa situação se desenrolasse, ele habitaria o presente, o seu presente, sem nenhuma dúvida ou inquietação em relação ao tempo e ao espaço físico da praia, relacionando-se plenamente com o que estivesse à sua frente, especialmente com Alice.

O trabalho com os atores começou com conversas separadas. Depois que ela aceitou fazer o filme, encontrei a Malu no Rio de Janeiro, dois meses antes da filmagem, e conversamos sobre o roteiro, sobre as sensações que ela teve ao ler, sobre minhas motivações ao escrevê-lo. A respeito de Alice, discutimos um pouco o quanto as camadas diferentes de tempo pelas quais ela transitaria deveriam pautar o trabalho da Malu e quanto disso seria trabalhado pela mise-en-scéne. Nos pareceu importante que, apesar de toda a inquietação, a personagem se relacionasse com Pablo como se os dois habitassem o mesmo tempo – e em sua construção, o filme poderia colocar isso em dúvida.

Como eu não tinha nenhum ator em mente para o papel de Pablo, marquei algumas conversas com atores indicados por amigos ou conhecidos de amigos. Eu não tinha nenhuma idéia clara em relação ao tipo físico que eu procurava. Me interessava muito mais um certo jeito de ser – que eu mesmo não conseguia definir exatamente. Me parecia importante que, no filme, Pablo tivesse uma presença forte, algo de muito encantador sem ser construído, sem ser intencionalmente encantador. Uma certa calma, um estado de integração com o tempo presente. E traços de uma evidente juventude. Rafael Rodarte, além de ficar intrigado pelo roteiro de uma maneira interessante, me pareceu ter um ritmo muito próximo ao que eu procurava, uma qualidade de tempo e de olhar que evitavam qualquer sensação de uma beleza e de uma juventude impositivas. Fizemos uma leitura e conversamos sobre possíveis interpretações do roteiro, sem esmiuçarmos muito (me interessava manter aberta a leitura dele sobre o material).

Depois dessas duas conversas, só me pareceu fazer sentido voltar a trabalhar com os dois juntos, na praia (porque, apesar de serem dois atores com experiências muito diferentes, estava claro para mim que a relação entre os dois e entre eles e o espaço é que construiria de fato os personagens – e o filme). Assim, fomos para Ubatuba antes do resto da equipe, três dias antes das filmagens, e foi esse o nosso período de ensaio. Malu e Rafael não se conheciam até então, e me pareceu importante também que os dois tivessem um tempo mínimo de convivência antes da filmagem para se sentirem suficientemente à vontade no trabalho um com o outro. No primeiro dia, lemos o roteiro e conversamos sobre linhas gerais. Li para eles um poema do espanhol Benjamín Prado ("Olhando fotos de Anne Sexton") que eu já havia enviado para a Malu por e-mail e que me remetia ao clima que eu imaginava para o filme, especialmente em relação ao olhar de Alice sobre as coisas. O poema descreve duas fotos da poeta Anne Sexton, com idades diferentes, olhando o mar em uma e a fumaça de seu cigarro em outra, e o olhar dela muda muito entre as duas fotos. Conversamos sobre o poema também e fomos para a praia. E então eu apenas quis que eles conhecessem o espaço e começassem a se relacionar com ele. Propus alguns exercícios de exploração, de observação, de registro da experiência no espaço da praia.

No segundo dia, fizemos algumas improvisações a partir do roteiro. Primeiro, pedi que eles recriassem livremente o que teria sido a conversa entre Pablo e Alice na praia, sem as camadas de tempo interferindo na ação. Foi uma improvisação bastante longa, achei importante dar tempo para que a relação fosse se construindo aos poucos, e tanto Malu quanto Rafael tiveram a tranqüilidade de não forçar a entrada de nenhuma ação do roteiro que parecesse pouco orgânica dentro do que eles foram criando. Depois, eles refizeram a cena com Alice moldando Pablo a todo instante, determinando todas as ações dele.

Só no terceiro dia trabalhamos o roteiro tal como ele estava escrito. Foi muito bom perceber como o trabalho do segundo dia alimentou a relação dos dois atores com os personagens e, principalmente, a relação que eles criaram entre um personagem e outro. Muita coisa nova surgiu nesse dia – fizemos pequenas modificações no roteiro nesse dia, mas o mais importante foi mesmo a constituição dessa relação em diversos detalhes. O tempo dos olhares entre os dois, o prazer de uma frase ou a dificuldade de outra, os gestos – quase nada partiu de uma marcação prévia. Durante a filmagem, os diferentes movimentos de Alice e a constância apaixonada de Pablo já estavam construídos para Malu e Rafael e também para mim, para a Heloisa Passos (diretora de fotografia), para o Marco Dutra (assistente de direção), para o Daniel Turini (técnico de som), enquanto fazíamos as decisões finais de decupagem, iluminação, som.

Deu vontade de comentar também uma pequena coisa que me parece interessante em relação à constituição do Pablo como personagem no filme: no plano mais aberto dos dois sentados na areia, que vem logo depois do black no meio do filme, o Rafael, sem que tivéssemos combinado, tirou um gravetinho da areia e ficou mexendo com ele na mão. Eu achei ótima essa ação, e não comentei nada. Meses depois, quando viu o filme montado, o Rafael se incomodou ao perceber que ficava mexendo com o gravetinho ao longo do plano, não se lembrava de ter feito isso. Mas esse gesto, para mim, traz o Pablo muito mais para o espaço; de certa forma o presentifica, faz com que ele escape um pouco da pura idealização, porque não se trata de um gesto idealizado. E foi um gesto trazido pelo ator, sem muita consciência, e nunca antes pensado por mim. Como Pablo no filme é acima de tudo uma presença, esses pequenos gestos têm uma importância grande na sua construção, e foi fundamental para mim ir percebendo isso durante o trabalho com os atores no espaço da praia.

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Luiz Carlos Oliveira Junior, diretor de O Dia em que Não Matei Bertrand

Nosso filme é adaptado do conto do Sérgio Sant'anna, narrado em primeira pessoa pelo protagonista (o homem que quer matar o Bertrand). A narrativa mistura uma matéria oriunda da mais pura ficção paranóica (onde o delírio e a distorção dos eventos têm lá sua participação) e uma objetividade que chega a ser enclausurante – sobretudo quando a história atinge o ambiente da repartição pública. Primeiro desafio: queríamos fazer um filme sem voz off e sem câmera subjetiva (ou melhor, sem planos em que uma placa dissesse: "olha só, isso aqui é um plano subjetivo"). A narrativa passou à terceira pessoa. A parcela realmente expressiva do filme era agora questão de como conceber o espaço, a cenografia, a luz, o quadro, tudo isso consequentemente adquiriu um papel fundamental – e impôs verdadeiras dificuldades de decupagem em alguns momentos. E quanto ao trabalho do ator, ele teria de transformar todo aquele fluxo de pensamentos que estava no conto em atuação física.

O comportamento do personagem se dividiu em duas etapas: a primeira, no quarto, é a insônia, a ansiedade da espera, o personagem entregue a ele mesmo, no limbo entre o sonho e a vigília. Depois, na rua, a faixa de transição: o personagem está caminhando para a "realidade" do confronto. No escritório, enfim, a coisa ficaria mais sóbria, real, mais seca e sem ambiguidade – mas podemos argumentar, é claro, que o duelo e a parte final do filme são tão ou mais fantasmáticos que todo o resto (a começar pela cenografia anacrônica daquele ambiente, ou pelo aspecto volátil do confronto). Em termos de composição geral do personagem, era isso. Sempre tivemos em mente essa divisão entre uma primeira parte no quarto, mais delirante, e uma segunda parte no escritório, mais objetiva. E tinha o tecido conectivo, a rua e o estacionamento, mistura de um com o outro. Resumindo: era como se na primeira parte as coisas fossem fruto mais da cabeça do personagem do que do mundo, e na segunda parte o contrário, isto é, o mundo impusesse ao personagem sua realidade. Pro ator, isso resultaria em uma liberdade de composição e de gestos maior na primeira sequência do filme, e um retraimento dos movimentos na segunda.

Quando chegamos ao Julio Adrião, após assistir ao seu encantador espetáculo, A descoberta das Américas, tínhamos uma certeza e uma dúvida. A certeza: esse é o cara. A dúvida: como fazer pra esse corpo elástico, para o qual não parece haver moldura possível, retrair-se. Pois era isso que o personagem precisaria fazer: sumir dentro de si mesmo na cena do confronto. E o que havíamos visto na peça era um corpo que mudava de tamanho e de forma constantemente, parecia uma figura de desenho animado, que incha, contrai, retorce, explode, recompõe-se, cai do precipício e volta vivo. Nas primeiras conversas com o Júlio, tanto a certeza se acentuou como a dúvida se dissipou. Ele faria, com certeza, o movimento inverso (que talvez nem seja tão inverso assim...). Saber que ele era o ator que procurávamos nos deu muita liberdade e tranquilidade. Não houve ensaio, apenas conversas. Conversas sobre o conto, sobre o roteiro, sobre o personagem. O Júlio fazia perguntas sobre o mundo da ficção que lhe estávamos propondo. E comentava, em seguida, a situação do seu personagem em relação àquele mundo.

Com o Raphael Molina (que faz o Bertrand), com quem tivemos apenas uma conversa antes das filmagens – e ele nem quis ler o conto! -, fomos depurando já dentro do set, tomando cuidado para não ser mera subtração: na sua fala, quando ele atende o telefone, fizemos alguns ensaios, com tudo pronto, antes de rodar o plano. Lembro que eu e Ives íamos reduzindo sua fala, cortando as palavras, até só sobrarem praticamente uns resmungos. O personagem do Bertrand era uma figura que o Sérgio Sant'anna trabalhava muito bem: você não sabe nunca até que ponto ele é de fato uma pessoa de carne e osso ou o signo de uma estrutura. O Bertrand precisava ser esse personagem que não dá motivos ao espectador para justificar o ódio do protagonista, ao mesmo tempo em que esse ódio é perfeitamente pré-justificado.    

Para o Júlio, sempre deixamos claro: na cena do quarto, você é dono do espaço, sinta-se à vontade para se mexer, gesticular, sair do quadro, o que quiser. Já no escritório, existe uma armadura. Levamos ele à locação onde filmamos a cena do quarto, antes mesmo de ser montado o cenário. O escritório, contudo, ele só conheceu no primeiro dia de filmagem. Isso de alguma forma casou com nossas indicações de espaço (um que ele dominava, outro que lhe era estranho e inibidor). E o mais impressionante, se você observa a cena do confronto, é que o Júlio transformou isso em evidência física.

Enfim, o curioso ao cabo disso tudo é que ainda não tenho a impressão de conhecer plenamente o personagem do Júlio. Alguma opacidade se criou nesse personagem que, ao ler o conto, eu tinha a impressão de conhecer e compreender precisamente.

Ives Rosenfeld, diretor de O Dia em que Não Matei Bertrand

Concordo com tudo o que colocaste e queria apenas acrescentar a esse fato de não conhecermos plenamente o personagem do Julio. Diria mais. Quase não o conhecemos. Até porque acho que nossa orientação sempre foi procurar não trabalhar com construções e genealogias. Não importava-nos histórias. A única descrição de personagem que teremos no filme se dará no último plano, e apenas que ele trabalha naquele escritório. De resto, nem sequer o nome do nosso protagonista sabemos. Talvez pelo quarto dele poderíamos conhecer algo mais dele. Por ser um ambiente de completa impessoalidade. Uma residência temporária. Mas ele também pode estar "temporariamente" há um bom tempo nessa residência. O Júlio algumas vezes procurou tentar construir um passado para o personagem. Acredito por ser o primeiro trabalho dele no cinema – sentiria-se mais seguro tentando assemelhar suas maneiras de moldar personagens no teatro, que certamente domina. Mas nós sempre tentávamos fugir dessas construções.

Lembro-me do primeiro plano em que filmamos. Uma caminhada por um corredor vazio. O protagonista aproxima-se do escritório de Bertrand. Falamos para ele: "Caminhe". E ele nos perguntava intenções e trejeitos. E nós: "Caminhe". Caminhou. Mas depois nos disse que interiormente pensava em como iria matar Bertrand etc. Quando olhou no video assist, o corredor estava tão escuro que mal se via seu rosto. Julio nos revelou que a partir desse procurou construir menos e caminhar.

O filme para mim é justamente isso. Uma intenção. E não uma história. Não importa saber quem é o protagonista, nem quem é o Bertrand, nem porque ele queria matar o Bertrand. Importa apenas a intenção dele de matar o Bertrand, e a incapacidade de matar.

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Ricardo Alves Júnior, diretor de Convite para Jantar com o Camarada Stalin

Mesmo na primeira versão do roteiro, já tínhamos (digo em plural, porque o filme é resultado de diálogos entre eu, Pablo Lamar e Gianfranco Rolando) a idéia de trabalhar com não-atrizes. Esse primeiro roteiro estava composto de ações que embora funcionassem no papel, se mostraram sem força na prática.

1. Comecei a buscar senhoras em um asilo: percorria vários por dia. Não tinha uma idéia preestabelecida de como deveriam ser essas senhoras; preferia me deixar ser afetado por essas mulheres. Assim foi o encontro com Olga e Marilu. Olga (a mais magrinha) foi a primeira a se interessar por fazer o filme, Marilu veio na seqüência. Intuía que a junção desses dois corpos (diferentes e imagéticos) teria uma potência desgarradora.

2. Nos primeiros encontros não falávamos sobre o tema do filme (na verdade nunca falamos!): conversávamos sobre a vida (elas tinham a necessidade de falar e nós a necessidade de ouvir). Tomávamos chá pela tarde. Durante uma semana foi a maneira que encontramos para conseguir fazer com que se estabelecesse uma relação de amizade entre elas. Isso foi feito através da troca e do incentivo a conversas sobre a história de vida de cada uma; lembranças de um passado distante.

3. Elas não sabiam quase nada do roteiro. A única informação era que elas viviam juntas e preparavam um jantar. Depois de uma semana de conversar, elas foram conhecer a locação. Começamos a improvisar as imagens escritas no roteiro original e filmávamos em vídeo. Essas imagens, distantes da realidade daqueles corpos, eram falsas: elas moviam mecanicamente, não viviam nenhuma experiência... era tão diferente da semana anterior, onde na mesa se chá milhões de imagens surgiam.  Então surgia um obstáculo: como conseguir construir as marcas do roteiro sem dar nenhuma indicação prévia??? 

Comecei a observar como elas se moviam naquela casa, quais eram os pontos de atenção e de interesse delas. Começamos então a modificar o roteiro, tornando-o mais minimalista. E o ponto que unia o primeiro roteiro àquelas duas mulheres não era o das ações indicadas, mas sim a não-ação. Elas vivem em um asilo e esperam, vivem a inércia do tempo. Então percebemos que a potência não era de interpretação e sim de PRESENÇA. O que era mais latente, não estava na ação e sim na não-ação. Encontramos a possibilidade de filmar o que não está dito, de filmar o invisível.  Surgia assim a dinâmica do filme, a relação da composição do enquadre com seu fora de campo. Encontrar esse caminho, afirmava todos os desejos do roteiro inicial (que já passava pela duração e pelo formalismo da composição) e dava a esses corpos a imagem de sua própria história. Não só história de um passado, de um sonho utópico e sim de um presente. Confluíamos para a síntese de materializar nos corpos de Olga e Marilu a proposição inicial do projeto. O fim da utopia e a espera beckettiniana (desculpem a liberdade do termo). Elas vivem no seu cotidiano a intensidade dos personagens de Esperando Godot. Poderiam se chamar Estragon e Vladimir!!! 

4. Depois de duas semanas, a relação delas com a equipe já era de puro afeto. Ocupamos um lugar de família, elas já aceitavam a regra do jogo e sabiam que eram peças fundamentais desse jogo. Começamos a filmar em 16mm. A primeira cena a ser filmada foi a do despertar. No primeiro instante, elas se assustaram com o tamanho da câmera, já que sempre tínhamos uma câmera mini-dv e agora estávamos com um equipamento para película. A cena foi realizada com o máximo de silêncio (e essa foi uma regra para toda a filmagem). Olga levou seu próprio terço e rezou o rosário da sua maneira. Algumas marcas foram estabelecidas, mas deixávamos lacunas para que elas finalizassem a cena. 

Na cena da janela elas não sabiam que estavam sendo filmadas, isso também foi o que aconteceu com a cena do jantar. Depois de Olga arrumar a mesa, pedi para elas ficarem sentadas esperando, que iríamos solucionar um problema no som. Ficaram ali durante 20 minutos, paradas, inertes, quando o tempo já estava pesado, o silêncio já era constrangedor olhei para a Renner Nader (câmera) e assim ela acionava o dispositivo. Em nenhum plano houve a palavra ação. Também não batemos claquete, pois acreditava que o que se deveria filmar era esse devir que não poderia ser separado pela palavra “ação”.

5. Na cena da cozinha, o abraço, o instante de vida que invade o rosto de Marilu. Com o processo dos ensaios, já tínhamos feito essa cena em vídeo. Funcionava muito, mas como repetir esse acontecimento? Principalmente como elas não eram atrizes e sem técnica para repetir sentimentos ou ações físicas. Bem, montamos a câmera e as luzes, sem que elas soubessem coloquei caixas de som no espaço. Antes de filmar, estive conversando com as duas. Comecei a perguntar sobre a vida de Marilu, tudo aquilo que ela já tinha contado na primeira semana de encontros. Naquela cozinha de 3 x 3, Marilu nos contou toda sua vida, a morte da mãe, a frustração de estar só, o amor platônico. Depois de 30 minutos, e uma longa história de vida, entreguei uma carta a Marilu e disse para ela ler só quando eu pedir, e que nunca deveria mostrar ou contar para ninguém o que estava escrito. Sem que Marilu soubesse, pedi a Olga para abraçá-la com a máxima força que ela tivesse. E que falasse para ela o que ela sentia naquele instante, contasse a Marilu um segredo... já que ninguém mais que a própria Olga, pudesse reconhecer a trajetória de vida Marilu.

Começamos a filmar a cena. Marilu abre a carta, coloco a musica a “Dia que me queiras” e vemos o rosto de Marilu transformando. Filmamos um instante de acontecimento particular daquelas duas mulheres, porque com a música alta, Olga e Marilu conversaram e compartilham um segredo, que é só delas... e  nunca soube e nunca perguntei o que Olga falou para Marilu, e o que Marilu responde para Olga.

6. Finalizando, o que reconheci durante o processo, foi a presença e não a atuação, acho que o processo está em uma linha muito tênue entre atuação e não atuação. Tudo foi composto para o olho-câmera, elas tinham a consciência desse olhar do outro, mas pela estratégia do processo, o instante de rodagem foi borrando os limites entre cinema e vida... Então a presença de Olga e Marilu serve de germe para a poética do curta Convite para jantar com o Camarada Stalin. O procedimento em Material Bruto (N. do R: filme anterior do diretor, num trabalho com usuários da rede de saúde mental) foi levar os corpos a um estado performático, para assim chegar e revelar as imagens individuais de cada corpo. Já nesse segundo trabalho, o procedimento é conduzir os corpos a um estado de não-ação, de não performance, com a intenção de também revelar essas potências individuais.

Acredito, que nos dois trabalhos a duração tem papel fundamental, primordial tal como a relação desses corpos com o espaço que estão inseridos.  A idéia de plano-enquadre (seguindo a linha de Pascal Bonitzer), faz com que esses corpos saiam de sua tensão do cotidiano, para traçar o caminho que só o cinema pode revelar, um jogo ‘perverso” entre o que está perto o que está longe, entre o visível e o invisível.

Como o amigo Caetano, não sei se respondi bem o que você perguntava...  Escrevi algumas idéias que estou perseguido por um caminho onde tenho sensação de ser um “campo cego”.

Setembro de 2008

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