in loco -- festival de curtas de sp 2007 Antes
que eu me esqueça: A verdade e a mentira (e nenhuma das duas) no caótico ataque
do vampiro à Cinemateca por Francis Vogner dos
Reis Mudança de paradigma? Jairo
Ferreira: crítico, cineasta, relegado durante muito tempo à condição de figura
exótica do cinema moderno brasileiro, diretor de alguns poucos filmes obscuros,
roteirista e assistente de direção de alguns outros filmes “experimentais”, militante
na crítica em muitos veículos e autor de um livro. Se há uns poucos anos atrás
se perguntasse quem era Jairo Ferreira, talvez a resposta se parecesse um pouco
com isso. Certamente, alguns poderiam se entusiasmar, mas, no geral, no clube
do cinema brasileiro, Jairo seria um tipo de figura de exceção. Não que ele não
fosse (na verdade ainda é), mas ser considerado “de exceção”, muitas vezes, é
uma maneira delicada de dizer que o cara, ou a obra, possuem uma importância reduzida
perto de outros que teriam a primazia de representar o cinema brasileiro, seja
na crítica ou nos filmes. Não seria essa uma das buscas do
cinema brasileiro? A de quem pode nos representar mais legitimamente? Temos essa
discussão no campo dos filmes, claro, mas, de algum modo, na crítica também. Às
vezes parece ser um disparate falar de um assunto como, por exemplo, o Cinema
Novo, e não citar, ou até mesmo não chamar para o debate, alguns papas do assunto.
Não que os especialistas mais consagrados sejam dispensáveis. O problema é outro:
talvez exista um certo receio em mexer em algumas questões já tão cristalizadas
no imaginário coletivo (ainda que segmentado, de um gueto). Pois
a vocação de Jairo Ferreira nunca foi a da unanimidade. Ele foi um iconoclasta
que não elegeu cânones em seus textos, sobretudo no livro Cinema de Invenção.
A obra escapava da sistematização e da estrutura de qualquer estudo crítico
(certamente por não ser um “estudo”, mas uma espécie de manifesto libertário-poético,
porque não programático). O experimental (ex-perimental) deixa de ser palavrão
para se configurar palavra primeira. E não bastava só discorrer sobre isso. Era
necessária uma coerência de forma-conteúdo. Para falar de experimental, só sendo
experimental mesmo. Maldito? Talvez, não. Maldito é José
Mojica Marins. Jairo certamente foi “mal visto” e “mal quisto” (o mesmo vale para
Andrea Tonacci, André Luiz Oliveira e Ivan Cardoso). Nunca, antes, a alcunha de
“maldito” submeteu alguém a tamanha crueldade de ostracismo, talvez nem Mojica
(que, mesmo estando à beira do abismo, foi lembrado aqui e acolá – com mais ampla
aceitação, só tardiamente), nem mesmo Sganzerla, que injustamente foi tido como
o realizador de O Bandido da Luz Vermelha até o fim da vida, mesmo tendo
realizado depois os filmes mais deflagradores já feitos abaixo nos trópicos. Talvez
devamos deixar de lado duas coisas acerca do mito Jairo Ferreira: mártir-herói
e porra louca. Dessa maneira, corre o perigo de ser vítima dos necrófilos e essas
compreensões podem eclipsar sua obra, que está ai em evidência, talvez mais do
que antes quando o autor estava em vida. Hoje, talvez, Jairo
não seja tão mais famoso ou influente que antes, mas sua “presença” post mortem
tem se ampliado consideravelmente no cenário cultural. Depois do prêmio Jairo
Ferreira, tivemos o blog com suas críticas, organizadas por Juliano Tosi, atual
crítico da Paisà e ex-editor da Contracampo (que por sinal, foi o último veículo
para o qual escreveu). Tivemos ainda uma edição especial da revista Zingu reunindo
alguns textos do crítico, e Alessandro Gamo lançou pela Imprensa Oficinal uma
coletânea das críticas de Jairo Ferreira, entitulada Críticas de Invenção:
Os Anos do São Paulo Shimbun. E eu, na primeira edição da finada revista eletrônica
Cine Imperfeito, tive minha estréia com um texto chamado “Escrita de Invenção”,
surgido uma semana após o falecimento de Jairo. Por fim, tivemos agora uma importante
retrospectiva de seus curtas na Cinemateca, dentro do Festival de Curtas de SP,
organizada pelo pessoal da Olhos de Cão (principalmente por Paulo Sacramento,
a quem Jairo legou, ainda em vida, a guarda das cópias de seus filmes). História(s)
da infâmia n-a-c-i-o-n-a-l A sessão dos curtas de Jairo,
em 28 de agosto de 2007, foi histórica. Na comunidade da Cinética no Orkut, falou-se
até em sobrenatural. Quando o Sol se pôs, mais ou menos às 18 horas e 30 minutos,
tivemos a volta daquele que nunca foi: o Vampiro da Cinemateca voltou a assombrar
os umbrais da caretice. Se a imagem é feita à semelhança de seu criador, houve
flagrantes visões translúcidas de Jairo Ferreira na forma de seus curtas-metragens,
todos exibidos em seqüência. O médium Paulo Sacramento, que já havia psicografado
o vampiro Jairo Ferreira, é um dos guris responsáveis pela evocação do guru. O
cara está mais vivo que nunca. A sala da Cinemateca foi assombrada
por seis curtas em sequência. O Guru e os Guris foi o primeiro da série,
com o guru da Cinemateca de Santos, Maurice Legeard, queimando o filme (literalmente).
Na seqüência, O Ataque das Araras, filmado em excursão de grupo de teatro
de Márcio de Souza ao Rio Negro. Seguiu-se Ecos Caóticos, documentário
sobre o poeta Sousândrade. Depois, Antes que eu Me Esqueça, um registro
do lançamento do livro do poeta Roberto Bicelli. A seguir, Horror Palace Hotel,
filmado em super-8 no XI Festival de Brasília, em 1978, quando da mostra paralela
Horror Nacional. Por último tivemos a única sessão de Nem verdade Nem Mentira,
falso documentário com a fictícia jornalista Ligéia de Andrade, interpretada com
graça por Patrícia Scalvi – uma das últimas vamps do cinema nacional. Quem
leu Cinema de Invenção e viu seus filmes entende que uma coisa é continuidade
da outra. Seus filmes também são feitos de fragmentos, inversões, uma banda sonora
siderada, que tem autonomia ao mesmo tempo em que libera o fluxo das imagens –
ambas, juntas, arrumando somas e combinações radicais de reverberações caóticas.
Os primeiros cinco são documentários. Mas nada de documentários de pesquisa, de
dados, de caráter sociológico ou fenomenológico: os documentários de Jairo Ferreira
estão para o documentário tradicional, assim como o seu Nem Verdade Nem Mentira
está para a ficção comum. Jairo testa os limites dessas classificações, virando-as
do avesso e quebrando o protocolo em torno da suposta seriedade dos intentos dessas
modalidades cinematográficas. Procedimento de abordagem
documental de Jairo Ferreira em Horror Palace Hotel ou O Gênio Total:
“Fale sobre o gênio... ou sobre o que você quiser”. Travessia ficcional de Jairo
Ferreira em Nem Verdade Nem Mentira: filme de ficção sobre o jornalismo,
criação sobre a suspeita da verdade dos fatos, falso documentário sobre a suspeita
da mentira dos depoimentos. Em Horror Palace Hotel,
a turma dos descontentes fica no bar e em torno da piscina. Bressane denuncia
que o “horror, não está no horror”. Mojica, insatisfeito com a banalização do
gênio. Ivan Cardoso denuncia a recriminação do super-8. Rimam o horror com Arnaldo
Jabor. E ainda temos Rudá de Andrade e Francisco de Almeida Salles, tudo sob a
câmera e a narração de Jairo Ferreira, que usa sua narração não como elemento
descritivo, mas como uma caneta a rabiscar em cima das fotos. Sua narração se
faz como ecos caóticos – por sinal título de outro de seus documentários de curtição,
nesse caso sobre o poeta Sousândrade, com a música Qualquer Coisa de Caetano
e imagens urbanas da cidade de São Luiz, terra do poeta. Talvez essa seja a locução
mais inventiva de Jairo, já que, segundo ele mesmo, “experimenta todas as possibilidades
da voz, tom e timbre em clima de piração total, já que Sousândrade foi precursor
da curtição poética visionária”. O Ataque das Araras
também se utiliza das imagens documentais a fim de ressignificá-las e de uma narração
que, em vez de cumprir sua função clássica de contextualizar, dialoga e até mesmo
briga com a série de imagens. Desse modo, faz troça com João Callegaro (que dirigia
um comercial ali), com a equipe de turistas japoneses e flagra o grupo de teatro
do escritor Márcio de Souza (que dirigiu um filme: Bárbaro e Nosso). O
Guru e os Guris é o testemunho de Maurice Legeard, mas dessa vez o personagem
toma conta também da banda sonora. Legeard corre, berra, é atacado por pipocas,
sempre em uma performance hiperativa, com uma câmera hiperativa. Jairo encontrou
um interlocutor perfeito no criador da Cinemateca de Santos e é onde o realizador
já preconiza a metafísica de botequim, que chegaria a um grau elevado em Horror
Palace Hotel. O Guru e os Guris é um curta fora de eixo. Mas
existe também uma sinceridade documental flagrante, uma sinceridade godardiana
de fazer um filme experimental colocando simplesmente a câmera na frente de gente
falando. Assim tivemos o Antes que eu Me Esqueça, com uma série de poetas
em sequência interpretando seus textos. Os filmes de Jairo podem ser o avesso,
do avesso, do avesso. Finda a sessão da Cinemateca, creio
que alguns foram contaminados, tanto melhor se assim for. A vampirização do vampiro
Jairo Ferreira não tem nada a ver com o vampirismo de parte do cinema brasileiro,
e ainda bem que seus filmes e textos se mostram bem vivos, pois a esperança é
que sua figura não vire objeto da necrofilia nacional que adula (mas não compreende)
seus artistas falecidos, os relegando ao ossário da história. Setembro
de 2007editoria@revistacinetica.com.br
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