in loco -- festival de curtas de sp 2007 Dores
da maioridade por Eduardo Valente
Sexta-feira, 24/08, primeira noite de programação do
Festival Internacional de Curtas de SP, em sua nova e fulgurante sede na Cinemateca
Brasileira (e que Cinemateca Brasileira, renovada, cheia de brilho), mais especificamente
na nova sala Cinemateca BNDES (e que nova sala: pela primeira vez na história
recente do Brasil temos uma sala de cinemateca com as melhores condições possíveis
de projeção de filmes!): curiosamente, os filmes brasileiros do Panorama Brasil
2 passam para uma sala apenas meia-boca em termos de público, enquanto o gigantesco
hall de entrada fervilha com dezenas de pessoas, várias delas realizadores. A
imagem acima descrita serve como curiosa metáfora do Festival de Curtas de SP,
quando chega aos 18 anos: trata-se de um ponto de encontro privilegiado, antes
de qualquer outra coisa. São Paulo é o festival onde o curta-metragista não pode
deixar de ir, porque lá ele encontra todo mundo e, em momentos como o já famoso
almoço do domingo, trava inúmeros contatos e troca idéias. É o único festival
nacional onde mais de 50, 60 diretores e técnicos do país todo se cruzam pelos
corredores de sua sede e esticam o Festival para mesas de bar por toda a cidade.
Mas, pelo menos no que tange os realizadores presentes (já que o público,
principalmente no CineSesc, continua numeroso, ainda bem – em que se destaque
a gratuidade do ingresso, sempre um diferencial), não parece ser mais um
espaço privilegiado para acompanhar os filmes. Se isso está
longe de ser uma crítica ao Festival, que assim cumpre um papel único e muito
importante no calendário nacional, não deixa de esconder uma sensação estranha,
pelo menos dentro das salas de cinema. Se é fato que o Festival foi achar
identidades múltiplas e muito felizes em iniciativas como as Oficinas Kinoforum,
o Kinooikos (ex-Formação do Olhar), as Noites de Kino (aperfeiçoadas
a cada ano), o Prêmio Revelação ou a Crítica Curta,
no que seria seu filé mignon, o Panorama Brasil, parece que algo se perdeu
com o passar dos anos - algo que tem a ver com a urgência de ver os filmes que
lá estão. Claro que os motivos para isso são vários: de um lado, temos a dimensão
do Festival que, espalhado por várias salas e numerosas sessões, incentiva pouco
a concentração e a atenção. De outro, a opção mesmo pelo formato do “panorama”,
que começou com um intuito que o tempo acabou tornando impossível de cumprir (o
de exibir toda a produção de curtas brasileiros): primeiro pelo aumento da produção
em película; e depois pela necessidade de incorporar o digital, o que impossibilita
ainda mais que se exiba um todo de produção. Com isso, São
Paulo herdou um paradoxo curioso: precisa fazer uma seleção, mas esta seleção
se assume como a de um “panorama”. Ou seja: não se quer, por princípio mesmo,
um olhar norteador – mas, como se consegue não ter um olhar ao selecionar? Será
isso possível, afinal? Que panorama, afinal, é este que se quer traçar? Por um
lado, se busca filmes de contato com o público; por outro, abrangência geográfica;
por outro, exibir alguns dos filmes mais importantes do cenário brasileiro do
curta; por outro ainda... Nesse abraço à totalidade, que nunca a alcança, São
Paulo perdeu a cara como seleção de filmes – e desta maneira se entende bem porque
os realizadores talvez sintam que ver os filmes por lá vai se tornando o menos
importante. É curioso que em anos recentes São Paulo pareceu
querer tomar alguns passos em direção a estabelecer um olhar mais determinado.
Primeiro, introduzindo a prática dos debates depois de sessão – já que debates
fazem querer crer que há algo a se discutir nos ou a partir dos filmes. No entanto,
sem a menor disposição para o confronto real com os problemas dos filmes (como
existe, por exemplo, no Festival Universitário) e com um ajuntamento de títulos
por sessão que parece um tanto aleatório (o citado Panorama 2 deste ano seria
um exemplo radical disso, com Trecho perdido em meio a filmes “populares”
– quando não popularescos), estes debates têm resultado cada vez mais mornos,
protocolares mesmo. Depois, houve a criação há três anos da seção Curta o Formato,
que parecia querer separar a idéia de “panorama geral” daquela produção mais atenta
ao formato do curta – no entanto este ano esta seção saiu do cardápio do Festival. Com
isso, só restou essa vaga idéia de panorama que, se nos indica um desejo de incluir
filmes que poderiam ficar de fora numa seleção mais rigorosa, por outro lado torna
menos compreensível a exclusão (que teria que ser, pela abrangência desejada,
programática) de filmes que se mostram claramente importantes na atualidade do
cinema de curta-metragem nacional. E é aí que, olhando para a seleção deste ano,
sente-se a necessidade de perguntar, por exemplo, se é possível um “panorama brasileiro”de
2007 que não exiba um só trabalho de Carlos Magno, definitivamente um dos nomes
mais importantes do formato curto no Brasil, hoje – nem que seja pela enorme e
instigante produtividade. Ou Homem-Livro, de Anna Azevedo, certamente um
dos documentários mais fortes do ano; ou um filme como Outono, de Pablo
Lobato, que consegue ser selecionado para um festival de ponta no mundo, como
o de Locarno, mas que é excluído de um panorama de quase 60 filmes brasileiros
do ano. Vejam bem: não se trata aqui de patrulhar a seleção
alheia por critérios pessoais nossos, mas justamente de se perceber a confusão
criada pela aparente ausência de critérios. Sem algum norte que seja, fica difícil
entender ausências como estas frente a presença de uma boa quantidade de filmes
absolutamente medianos, quando não medíocres. Porque este, afinal, é o risco de
se proclamar “panorâmico”: quem se encontra de fora, realmente ganha o direito
de questionar a exclusão. Afinal, com qual espectro de um panorama estes filmes
citados não se encaixariam? Nessa salada um pouco confusa de propósitos e escolhas,
acaba-se tornando natural ver a ante-sala mais cheia que a própria sala de exibição,
em plena sede do Festival. Na inconformidade, os destaquesDentro
do panorama (com e sem trocadilho) acima traçado, não se quer de forma alguma
negar que o Festival projetou uma série de belos curtas brasileiros, como Noite
de Sexta, Manhã de Sábado (Kleber Mendonça), Um Ramo (Marco Dutra e
Juliana Rojas), Trecho (Helvécio Marins e Clarissa Campolina) e Uma
Vida e Outra (Daniel Aragão), todos já comentados aqui na revista em festivais
anteriores; e proporcionou a estréia de pelo menos dois filmes bem fortes (De
Resto, de Daniel Chaia; e Sentinela, de Afonso Nunes). Mas, de fato,
a força destes filmes acabou um tanto diluída na maneira espalhada com que passaram
na programação. Os poucos resquícios de gestos curatoriais
acabaram caindo nas mãos do acaso – como o fato dos cursos universitários brasileiros
terem gerado pelo menos três belos filmes neste ano (O Brilho dos Meus Olhos,
Jonas e a Baleia, Alphaville), que acabaram unidos pelo critério
do Panorama Brasil 9 ser todo dedicado a filmes de escola. E assim, ao mesmo tempo
que foi curioso, não deixa de ser quase sintomático que o mais forte entrelaçamento
entre dois filmes que pude ver ao longo dos programas brasileiros tenha se dado
justamente em uma sessão de “excluídos” do Panorama Brasil, no programa Petrobras
1 (cujo papel dentro do Festival pode ser resumido no fato de ser o último listado
no catálogo e ter apenas duas projeções em horários e/ou locais pouco atraentes). O
primeiro filme da seqüência foi A Psicose de Valter, de Eduardo Kishimoto.
Trata-se de um filme quase completamente impossível de descrever, pois só faz
sentido numa tela de cinema. Kishimoto conseguiu juntar no seu filme uma gama
de oposições absolutamente apaixonante, através de um dispositivo de filmagem
que parece primar pela exatidão e o controle (na superposição de camadas de som
e imagem simultâneas porém distanciadas), quando exala liberdade, surpresa, encantamento
a cada quadro. O filme explode completamente os limites entre encenação e realidade,
porém sem a menor cerimônia que costuma acompanhar tais “experiências”: é divertido,
lúdico, debochado. Joga num mesmo caldeirão de sentimentos Boca do Lixo, Sokurov,
Scorsese, Sganzerla, Straub... e a lista poderia continuar por muito tempo, pois
é isso que A Psicose de Valter parece ser: todo o cinema do mundo em sua
maior potência, condensados em 18 minutos. Mais do que um tremendo filme, Kishimoto
presenteia o espectador com uma experiência que ele certamente nunca teve antes.
E isso, afinal, é raro.
Ainda sob efeito dessa bomba de sentidos
e criatividade (e por isso mesmo, pouco afeito a ser capturado por outro filme
na seqüência), a sessão tinha continuidade com outro filme de um ex-aluno da ECA-USP:
A Última Viagem de Arkadin D’Y Saint Amér, de Sérgio Zeigler (e Cacilda
Teixeira da Costa). Sem retirar o transe de Valter, o filme nos faz embarcar
num outro tipo de viagem igualmente surpreendente: a da memória e da imaginação
da mente de um artista. O filme de Zeigler e Costa é o anti-documentário biográfico
por excelência, pois pouco informa a quem não saiba qual a importância de seu
objeto, o artista plástico Wesley Duke Lee. No entanto, é o mais honesto retrato
deste homem, dentro da sua formatação que não preza pela informação e sim pela
sensação. Em três diferentes encontros em diferentes anos encontramos encarnações
distintas de um mesmo homem, que vai sendo marcado pela passagem dos anos, pela
perda ou recuperação de memórias, pelos desejos e potências que se esvaem ou se
renovam. É um retrato tocante e desconcertante do homem como depositário eternamente
em exposição de sua própria vida. A
força de ver estes dois filmes juntos só não foi a experiência estética mais marcante
do Festival de Curtas, mesmo fora de sua seleção “oficial”, porque tive a chance
de rever um outro trabalho dentro do Panorama 10 (e, ainda bem, encerrando-o):
Material Bruto, de Ricardo Alves Jr. Mesmo já visto antes na Mostra de
Tiradentes e no Festival de Belo Horizonte, o vídeo de Ricardo Alves (ou melhor,
do grupo Sapos e Afogados, já que o diretor quase co-assina o filme com os colaboradores
Juliana Barreto e Byron O’Neill) é destes trabalhos que se renovam a cada olhar.
Isso acontece acima de tudo por ter sua força ancorada na presença na tela de
quatro “corpos selvagens”: os dos quatro atores que representam personagens, e
ao mesmo tempo os criam. Eles são todos usuários do sistema público de saúde mental
de BH, o que é uma informação passada no final do filme que, se agrega sentidos
e interesse pelo processo de realização do trabalho, não tem por outro lado o
menor peso exotizante na avaliação do mesmo enquanto experiência estética. Sim,
porque o que chama a atenção nas performances dos atores do filme (e performance
certamente soa melhor do que atuação) é justamente o seu controle, especialmente
demonstrado no magnífico plano-sequência sob o som de Nelson Cavaquinho. Controle
esse que é duplicado na exploração de um espaço físico altamente escolhido e na
tensão constante e fascinante entre os centros de ação e os pontos de fuga que
compõem e destroem a imagem, ao mesmo tempo.
Composição e
destruição é justamente do que trata o tempo todo Material Bruto, um filme
tão especial e distinto que foi ao Festival mesmo sem se adequar a suas regras:
tinha 17 minutos quando o regulamento determina que os trabalhos em vídeo, embora
exibidos igualmente aos de película, precisam ter até 15 minutos de duração (já
para a película este limite não vale). Para o filme poder ser exibido em SP, o
diretor precisou então cortar uma seqüência de dois minutos do filme – o que até
poderia soar como um atentado a uma obra por uma arbitrariedade de seleção, mas
que no caso de Material Bruto só faz ampliar a sensação da liberdade de
sua articulação. O vídeo tem tanta possibilidade de escopo que, depois do Festival
de Curtas, passará também no Videobrasil – uma dobradinha ainda bastante rara
de ser atingida por um trabalho. Curiosa edição do
festival essa que, assim como pôde numa noite juntar mais realizadores fora do
que dentro de uma sala, teve seus pontos mais fortes exibidos fora do programa
principal ou vindos de um trabalho que não se conformava com as regras de inscrição.
Setembro
de 2007 editoria@revistacinetica.com.br
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