in loco - XII Festival Internacional de Cinema e Vídeo Ambiental
Reflexões sobre o cinema goiano na Mostra ABD-GO
por Rafael Castanheira Parrode

Dentro da programação do FICA, paralelamente à competição, a Associação Brasileira de Documentaristas de Goiás (ABD-GO) organiza a 9ª edição da mostra que reúne curtas produzidos no estado de Goiás. Com 50 filmes em sua programação, e sem a bandeira ambiental como motivadora da seleção, a Mostra ABD foi de fato uma grata e revigorante surpresa dentro do FICA, não tanto pela quantidade de filmes selecionados, mas principalmente pela relevância e qualidade de algumas obras exibidas. Chama atenção a diversidade de formatos, gêneros, idéias, mas sobretudo a força incontestável que essa nova geração de cineastas goianos tem imprimido em seus filmes. É um momento de arranque do cinema local.

Ainda que, à primeira vista, o que se celebre dentro desse cinema goiano seja um cinema que faça frente a um mercado, estabelencendo parâmetros já estabelecidos de um certo modelo de produção em face de uma experiência de construção mais sofisticada de cinema, a escolha do Júri de premiação da mostra reflete essa burocratização das formas que se quer para o cinema goiano. Se, por um lado, a produção goiana perde seu tempo com filmes absolutamente nulos como Ainda Não ou Concerto de Separação, e celebra obras formulaicas e desinteressantes como Diga 33 (prêmio de melhor documentário pelo júri) - típicos filmes para cumprir tabela e fazer volume nos editais de seleção e leis de incentivo - por outro, existem obras que transcendem questões meramente mercadológicas para dar vazão a indagações de intensa relevância artística, de cineastas que buscam construir um novo painel para o cinema goiano, criando obras que se sustentam provocando um curto-circuito, um choque e estabelecendo uma relação imagética mais profunda com o espectador.

CENNesse sentido, há muito o que se falar de um filme como O Desespero Fotográfico de Meu Pai, de Carlos Cipriano, experiência impregnante de memória, de passado, de tempo. Cipriano utiliza imagens em super-8 gravadas por seu pai nos idos dos anos 80, e através de letreiros irá situar o espectador no tempo, nos confrontando com um certo revisionismo da memória, cujas imagens dão uma dimensão forte de um tempo/lugar que hoje existe apenas dentro de nossas lembranças afetivas, de nossa relação com a infância, a transitoriedade da vida; da vontade irremediável de se congelar o tempo. É um retrato em movimento, intimista, borrado, cujos espaços são os grandes reveladores de uma temporalidade, de uma regressão e um reprocessamento do passado, registrados por alguém que desesperadamente ligou sua câmera para captar tudo à sua volta, antes que essa memória fosse enterrada pelas areias do tempo. Grande filme.

Ou de Julie, Agosto e Setembro, de Jarleo Barbosa, filme que estabelece um padrão muito acima da média no tratamento da imagem, e na construção de um olhar que desnuda de maneira inédita um certo sentimento de "ser goiano". Jarleo constrói um jogo de imagens que simulam a inadaptabilidade de uma Suíça que escolhe morar em Goiânia através de um intercâmbio e, a partir de então, passa a observar a cidade e seus habitantes, até aos poucos se tornar, ela mesma, parte da própria cidade. O plano da cidade que aos poucos vai se desembaçando diante do olhar de Julie é de grande beleza.

Essa mesma questão do olhar estrangeiro diante da cidade de Goiânia também aparece em Talvez Seja o Vazio. O diretor Rafael Almeida demonstra talento para construir imagens, e um certo sentimento de melancolia que parece impregnar todo o quadro , buscando enquadrar um sentimento de vazio pelo qual passa uma garota que  parece ter acabado de se mudar para Goiânia e lê, em off, uma carta toda escrita em alemão. Essa tentativa de exprimir em imagens todo um sentimento  contido na carta se mostra frustrada, uma vez que toda essa contrução imagética do vazio se reveste de um certo clichê de representação (o All Star jogado no canto; as xícaras vazias). Mas há, além disso, um intenso descompasso entre o que se diz na tela (e a voz em off repreende as imagens, colocando-as em segundo plano) e o que se filma, gerando um descontrole, um descompasso que acaba compromentendo bastante a apreensão do olhar diante do filme.

Ainda nesse sentido do olhar de fora para dentro, da cidade que vai sendo desnudada diante dos olhos de um forasteiro, é recompensador assistir a Enquanto, curta de conclusão de curso da primeira turma formada pelo curso de audiovisual da UEG. Dirigido por Larissa Fernandes, impressiona aqui o domínio do espaços, do tempo cinematográfico e da narrativa, criando uma espécie de thriller romântico, em que o desencontro dos personagens acaba nos revelando toda uma cidade em movimento, que parece acolher pequenos encontros amorosos, sempre levando adiante um sentimento de transitoriedade, de continuidade, que dá ao filme uma força incomum dentro dessa nova geração de realizadores surgida em Goiás.

CENOs curtas experimentais que mais chamaram a atenção buscam um trato criativo extremamente orgânico com a imagem, e da força que essas imagens podem provocar no espectador. Eu Já Não Caibo Mais Aqui é um belo exemplo desse cinema quase que artesanal, que busca construir incessantemente o quadro cinematográfico, seja através do manuseio e do corte do filme, seja através de uma necessidade de se extrapolar o quadro para dar uma impressão de incômodo, de impermanência, de aprisionamento. Quase que uma peça de pop-art, Eu Já Não Caibo Mais Aqui parece refletir um sentimento  de insatisfação do próprio cineasta diante de uma certa acomodação da imagem, de um cinema que busca extrapolar os próprios limites do quadro.

Mostra a Tua Cara, por sua vez, se reveste de uma pretensão temática que coloca o filme em uma corda bamba. Ao tentar falar sobre uma certa identidade religiosa nacional, Maurélio Toscano busca criar, através da fotomontagem, um forte sentimento de desordem, de sincretismo, que provoca um enorme estranhamento no espectador. Ao concatenar uma série de elementos principalmente cristãos e africanos, Maurélio tenta traduzir toda essa mistura religiosa dentro da chave do surrealismo, onde a possibilidade de brincar com esses elementos possibilita uma reflexão imagética bastante soturna e visceral. A sequência em que um crucifixo tritura e mistura o pó de café dentro da xícara é uma das que demonstram a capacidade do filme em dialogar de maneira menos óbvia acerca das influências multiculturais e religiosas que compõem o Brasil.

Ainda entre os curtas experimentais, chama a atenção outro filme de Rafael Almeida, que mais uma vez parece demonstrar uma certa dificuldade na articulação das imagens, e na confiança que ele próprio deposita nelas. Em Azul Cor da Terra, Rafael assume uma postura  de experimentação de imagens de arquivo das mais variadas mídias, e do sentimento e da reflexão que a simples disposição e montagem dessas imagens pode provocar no espectador. Há a água. A água azul, saturada. A calmaria. Há o choque da água com a terra; do azul com marrom. A violência das águas. A força incontrolável da natureza. O poder e a beleza das imagens já seriam suficientes para que toda uma reflexão acerca dos problemas ambientais, das enchentes e inundações, da natureza implacável frente ao homem e sua mortalidade, se fizesse presente na tela. Entretanto, todo o projeto do filme escorre pelo ralo quando, ao final, o filme tenta explicar, através de letreiros, a origem daquelas imagens e a relação delas com o discurso ambiental. É uma anulação imagética  que engessa toda uma possibilidade de enfrentamento de questões acerca do poder das imagens. As imagens deveria falar por si.

CENO Ogro, é uma grata surpresa vinda da escola goiana de animação e dos diretores Márcio Jr. e Márcia Deretti. Adaptação dos famosos quadrinhos de Júlio Shimamoto, o filme parece querer levar adiante a idéia dos quadrinhos em movimento, uma vez que todos os elementos da HQ estão presentes no filme. Para quem conhece os quadrinhos de Shimamoto e seus traços contrastados, a incidência da luz e da sombra, da violência, não há grandes surpresas em termos de adaptação, mantendo-se fidelíssima à obra original.  Entretanto, o que impressiona aqui é a maneira como os traços incofundíveis de Shimamoto ganham movimento e vida na tela. O jogo de luz e sombra é levado às últimas consequências, e a idéia de movimento ganha contornos expressionistas que dão uma dimensão etérea ao filme. A sequência da chuva é de uma beleza impressionante.

Fica, ao final, sensação de um cinema que parecia adormecido e agora quer renascer. A Mostra ABD-GO reflete, de uma maneira bastante interessante, essa transição por qual tem passado o cinema goiano. Essa força, essa orginalidade do olhar, atingida por alguns filmes, ainda que poucos, é suficiente para que voltemos os olhos para o cinema goiano com muito mais interesse e curiosidade.

Julho de 2011

editoria@revistacinetica.com.br


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