Uma Garota Dividida Em Dois
(La fille coupée en deux),
de Claude Chabrol (França,
2007) por Eduardo Valente Conto
de fadas cruel
Tal e qual as duas damas que, neste novo filme
de Chabrol, cercam o personagem de François Berléand (o escritor
Charles St-Denis), uma vestida sempre de branco e a outra sempre
de preto, que curioso díptico este Uma Garota Dividida em Dois
forma com A
Comédia do Poder, seu filme anterior (exibido este ano
no Brasil). No olhar que jogam sobre a sociedade francesa, mais
do que opostos, os filmes se revelam complementares (como também
é o caso com as duas personagens de cores opostas): tudo que no
filme era ambiguidade e mistério de motivações no filme de 2006,
revela-se aqui de uma legibilidade extremada.
Assim,
se Benoit Magimel (ao lado) surge em cena como aquilo que parece ser nada mais
do que um mimado filhote de família riquíssima... é isso mesmo que ele se revelará
e confirmará a cada sequência. Chabrol aposta radicalmente na composição pela
caricatura (ora, o nome na porta no local de encontro entre os amantes é Paradis
– Paraíso), e assim se permite fazer um de seus filmes mais (dolorosamente, claro)
engraçados. Por isso, se até chegamos a pensar em algum momento que a relação
que Gabrielle (uma Ludivine Sagnier luminosa) estabelece com os dois homens que
a disputam (Berléand e Magimel) esconde algum tipo de motivação secreta, de manipulação
pela aparência inocente, logo descobriremos que não: ela é de fato uma protagonista
que encarna a total ingenuidade e entrega, uma heroína melodramática que recairá
nos mesmos erros e na completa credulidade.
De
fato, a lógica que rege Uma Garota Dividida em Dois é a
do conto de fadas (ou seria por acaso que a protagonista se chama
Gabrielle Deneige – ou seja De Neve?): terreno antes de tudo para
o conto moral, para a predeterminação de papéis. Só que é um conto
moral à la Chabrol, ou seja: Gabrielle pode até ser a heroína
sofredora que ao final terá aprendido uma lição e “virado mulher”
(algo que é dito a ela mais de uma vez), mas ela nunca será olhada
com condescendência ou carinho, assim como este processo de provações
não garantirá nenhum happy end (e o sorriso de Sagnier
é, assim, o grande enigma do filme).
Este,
afinal, é o local, por natureza, de Chabrol: o do manipulador distante (e aqui
a sua manipulação da linguagem parece mais completa do que nunca), daquele que
faz seus personagens sofrerem pelo simples prazer de revelar a partir deste sofrimento
as engrenagens de poder mesquinhas das relações entre os homens (e aqui ele coloca
em cena além das óbvias relações homem/mulher, os jogos de poder por questões
de classe, de domínio intelectual, de idades e gerações). Difícil é saber por
qual passe de mágica a manipulação chabroliana consegue ao mesmo tempo ser tão
fria, distante, cruel, e ao mesmo tempo soar tão humana (ao contrário do que vemos,
digamos, num Todd Solondz), estranhamente calorosa. Este é, desde sempre, o fascínio
de seu cinema. Setembro de 2007
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