in loco - cobertura dos festivais

Sujos e Sábios (Filth and Wisdom),
de Madonna (Inglaterra, 2008)
por Paulo Santos Lima

Cinema de cantora

A horrenda projeção de Sujos e Sábios na sessão das 16h do sábado, no Estação Botafogo 1, poria a pique até mesmo o filme de Philippe Garrel (OK, quase poria), tamanhos os problemas: som baixo e, ainda assim, denunciando um ruído medonho, imagem mais lembrando um VHS e, talvez pior, espremida horizontalmente. No caso deste primeiro longa dirigido por Madonna, tornou-a uma das piores experiências do festival até agora. Mas, sendo justo, o filme ajudou: a cantora, utilizando a palheta estilística do cinema indie americano, constrói um discurso no qual se discute, na essência, a dualidade que agrega a vida, entre o torto e o certo, o sujo e o elevado, o feio e o belo – resumindo: a vida é uma moeda de duas faces.

Tal “profundidade” se faz parelha com os procedimentos formais adotados pela estreante cineasta, que utiliza uma “descompromissada” estrutura de esquetes que, na verdade, surgem mais pela fraqueza dramatúrgica, uma vez que a história segue fiel ao percurso de sua meia dúzia de personagens. O “filósofo”, no caso, é o imigrante ucraniano A.K (o músico Eugene Hutz), que se dirige à câmera (a nós) para ensinar um pouco sobre a vida. Cínico, ele tenta a carreira musical, mas equilibra o orçamento fazendo programas sado-masôs a excêntricos. Dá o mesmo conselho à amiga gostosona, para ela vender seu corpo nos palcos de striptease.

O tom é cômico, capturando bizarrices humanas, mas tudo muito comportado, sem tirar sutiãs, calcinhas e cuecas. Ainda que tente extrair humor através do sensacionalismo em cima do sexo (num oportunismo canalha, em conservadorismo bastante boçal), o filme mantém irrestrito carinho com seus personagens. Ou seja, Madonna está mais para John Cameron Mitchell (em versão família) e passa longe de Todd Solondz. O ritmo ágil interpelado pelas sacadas cômicas quase esconde, mas permanece impressa na tela uma falta de fluxo espacial que explicita ainda mais o baixo texto que estrutura a narrativa – e estamos, sim, num filme de dramaturgia.

Talvez fosse melhor Madonna ter apresentado esta coisa num vídeo na sala de TV, para uma roda de amigos. Mas, ao torná-lo público, inclusive passando-o no Festival de Berlim, surgem as questões: ela decidiu-se por experimentar a direção para “agregar valor” à sua imagem? Ou mostrar sua visão de mundo? O fato é que Sujos e Sábios acaba desmascarando o que de fato é Madonna: um dos maiores fenômenos pop da história, sobretudo até o início dos anos 90 (e sabendo muito bem amalgamar elementos à sua expressão artística ao fazer uma soberba fusão de corpo e imagem), o discurso que saía de suas performances era de uma rasura absurda, nada além de uma transgressão comportada, com peitinho aparecendo ali, gemido lá, sem nenhum abalo efetivo contra os valores de sua época. Michael Jackson, nessa sua identidade sexual que transita entre o homem, a mulher, o animal e o vegetal, vem incomodando muito mais. Mas é inegável que este Sujos e Sábios acabe por ser um “filme de autor” no sentido puro da definição: revela, em cada um de seus procedimentos” a visão de mundo do seu diretor. Um filme de cantora... da cantora, Madonna – o que é muito ruim para a mesma e pior ainda para o cinema.

Setembro de 2008

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