A Fita Branca (Das Weisse Band), de Michael Haneke (Áustria/Alemanha/França/Itália, 2009)
por Cléber Eduardo

O controle como resistência ao (des)controle

O compromisso do narrador-personagem de A Fita Branca, de Michael Haneke, é com a exposição dos vestígios, não com os estudos das evidências. Diante dos vestígios, perguntas são feitas, há lacunas nas respostas, constatações imprecisas.  Diante das evidências, não há perguntas sem respostas, nem lacunas a preencher. Temos filme e narrador diante de presenças significáveis, em dúvida sobre os significados a serem construídos com essas presenças, mas certos da necessidade de significá-las, sem apresentar uma pedagogia. A crise das evidências como prova de mundo não abre mão das evidências como norte nesse mundo. Ao organizar os fatos de dado momento (anos 10 do século 20) e em dado lugar (aldeia no interior da Alemanha), como testemunha, protagonista ou ouvinte de relatos, esse narrador encara os enigmas de acontecimentos violentos como enigmas, sem retirá-los desta condição, embora procure um sentido e uma razão para eles. Algo sempre escapa em sua tentativa de apuração.

O filme irá reproduzir esse tipo de narração, empenhada em organizar os indícios, mas sem transformá-los em evidências. Não há comprovações, ninguém acusa culpados, culpados não confessam, a solução de crimes é empurrada com a barriga, mas gestos de vingança estão evidentes, seja contra o poder local (o dono da terra, um barão), seja contra a autoridade (o pai e pastor, simultaneamente). O filme tanto nos oferta quanto nos omite evidências, de modo a rastrearmos essa aldeia ao mesmo tempo com olhos de vigilância e de estranhamento. Procura-se cultivar uma imersão imediata do espectador em um mundo movediço e sinistro. Se os personagens têm função, porque nos ajudam a entender aquele mundo em alguma medida por meio de suas simbolizações, eles também têm força própria. Também são. Não apenas estão a serviço. O perigo parece à espreita, o mal pode estar em todos os lugares e, quando a perversidade é o padrão, não há maniqueísmo possível.

Nem o narrador pode ser encarado como alicerce dos valores, como a voz do filme na qual nos ancoramos, porque, quando resolve agir, ele o faz contra a reação a um estado de coisas. Sua motivação, portanto, é conservadora: conservar a mesma ordem que provoca reações a ela. No entanto, esse professor, como nos mostra sua narração e as cenas, é um lambe-botas. Trabalha para o poder, beneficia-se dessa ligação, é mansinho diante dele. Quando decide agir por conta própria, esbarra nas interdições, baixa a cabeça e deixa tudo por isso mesmo. O emprego do narrador em primeira pessoa, que narra a partir de suas memórias para tentar entender retroativamente enigmas do passado e talvez ofertar matéria-prima para um entendimento da Alemanha no contexto anterior a I Guerra (assim é dito na introdução), é aqui um tanto ambíguo. Se o personagem parece ser modelo de comportamento, potencializado por estar enamorado da virginal Eva (nome de pecadora, em contraste com Clara, a filha do pastor, que é punido pelos “pecados”), não há garantias de falar em nome do filme.

Isso não afasta a proximidade entre sua narração verbal e narração cênica de A Fita Branca. Se existe algo em comum entre personagem e filme, é especialmente um saudosismo de noções de uma comunidade idealizada, uma certa noção de Europa – não do passado, mas de um projeto talvez nunca viabilizado na existência histórica. Essa parece ser a tônica motriz dos filmes de Haneke: o luto pelo aborto de um projeto nunca concretizado.

Essas são analogias a partir do filme, que, embora sejam suscitadas, não estão em sua dramatização. E é essa dramatização, aquecida pela observação atenta e sem seduções sentimentais, que adensa A Fita Branca. Para se chegar à imersão nesse microcosmo expandível, a instância narrativa operada por Michael Heneke, em vez de se exibir como operação, oculta-se nas sombras da discrição e da descrição. Nesse sentido, por lidar com uma comunidade também marcada pelos vestígios, não somente por evidências, essa narração audiovisual funde-se com seu universo. As operações são empregadas para não serem percebidas, para construírem presenças, situações, cenas, embates e conflitos, sem estarem à frente disso tudo. E essas presenças são duras, mecânicas, asfixiadas, compostas, formais, ritualizadas, pré-determinadas, inibidas. A força dessas presenças está naquilo que há de reprimido nelas. Nos vestígios, portanto. No fora de quadro, da imagem, que reverbera no quadro.

Ao se assumir como narrativa em cima de vestígios, como havia feito até com mais força em Cachê, Haneke valoriza aqui – a princípio e não por princípios – a indeterminação como potência. O ocultamento e a opacidade, informações pela metade e conclusões em dúvida, tornariam as representações mais complexas. Mais ambíguas. E mais ativas na percepção do espectador. A Fita Branca, porém, escapa, com ambiguidade (sempre), dessa vertente. Não abre mão do esforço de estabelecer relações lógicas entre fragmentos aparentemente sem relações. Arrisca uma hipótese. Só não se pode dizer que marque uma posição sem dúvidas. Se tiver uma tese, é, acima de tudo, sobre a necessidade de tê-la, mesmo sem certezas completas. Daí sua distância em relação à indeterminação como um valor em si, sua pouca proximidade com o clube dos filmes diante no qual não se pode fazer nada, apenas lidar com as coisas como elas se apresentam, estabelecer recusa à “leitura”, à revelação e às relações significantes.

Essas recusas e o fetiche da indeterminação têm sido um dos pontos constantes do cinema mais associado a uma noção de contemporâneo (recuo da enunciação, presenças no lugar de personagens, mal estares sem causas). Já a indeterminação de Haneke e de A Fita Branca é da ordem da inevitabilidade, não um posicionamento no mundo. O filme age por dentro dela (da indeterminação inevitável), sem apenas assisti-la, sem celebrá-la, sem ver nela uma liberação. Temos a sensação de apocalipse do homem, seres e sociedade doentes ou fora de controle, uma soma de fracasso com patologias, de continuidade de um silêncio abafador de gritos de dor. Mas temos uma narrativa que, diante disso, apresenta-se com espanto calado.

Michael Haneke transforma o cinema em convivência de mal estares. O mundo mostrado aceita tudo. Mas não o filme. Se por um lado não há saídas para esses mal estares e para as patologias (sociais ou individuais), por outro a maneira de mostrar as coisas tem atitude de reação, não de pura resignação e impotência. Reage pelo simples fato de estar atento diante dos vestígios para procurar entender suas motivações, mesmo sem concluir algo a partir dessa atenção. O contraponto é o estilo. O mundo filmado está corrompido e sob um descontrole passivo; a força da lei e das autoridades só é aplicada em casos cotidianos. Para filmar esse mundo ao mesmo tempo controlado e em descontrole silencioso, Haneke parte de um método do controle, da precisão, da marcação dos corpos, da rigidez da representação. Seria essa a re-ação ao descontrole: um controle pela forma, pela asfixia, pelo quadro que encerra, mas também que não alcança, ficando com metade das situações. Do lado de fora de uma porta fechada onde a ação principal ocorre. Fica com os vestígios, mesmo no controle.

Não há defesa dos filmes de Haneke sem algum nível de desconfiança. Não deveria haver, pelo menos. A dúvida, nesse caso e em alguns outros (Brian de Palma, David Lynch, Dario Argento), é elemento fundamental, inerente aos fundamentos das propostas, que tanto mais se potencializam quanto menos nos asseguram de estarmos na direção certa. Abolir a dúvida na relação com as imagens e com as estruturas narrativas (e suas respectivas operações de significações e dissociações), em obras de diretores como esses, é engarrafar o que de mais forte eles tem: aquilo que escapa.

Fevereiro de 2010

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