edição especial curtas brasileiros 2009
Flores de plástico
por Luiz Soares Júnior

Flores em Vida, de Rodrigo Marques e Eduardo Consonni (São Paulo, 2009)
Phiro, de Gregorio Graziozi (São Paulo, 2009)

A princípio, é sintomático que Phiro e Flores em Vida tenham características formais em comum. São filmes que têm como personagens pessoas idosas, embora personagens que se relacionem de forma distinta com esta condição: um homem semi-cataléptico e uma industriosa vendedora de flores. Mas o que se deve enfatizar é que, justamente por serem idosos (julgamentos de valor à parte), estes personagens tem um espaço ou nulo ou extremamente restrito de ação, e portanto de acesso à vida.

No caso da mulher, Lazara Crystal, a tenda de flores, abarrotada de toda espécie imaginável de souvenirs e bibelôs que se puder imaginar, proliferação que torna o seu espaço de movimento e ação ainda mais irrespirável. Mas ela fala, o que é uma forma privilegiada de interferir sobre o mundo e, sobretudo, de estabelecer interações com ele. Aliás, ela fala sem parar. Ou melhor: como sua vida atual não é muito movimentada, ela narra, conta eventos passados (conta ou inventa, não vem ao caso). Para aturdir ainda mais a nossa percepção, a tagarelice da senhora é intensificada pelo dinamismo inventariante da câmera: a câmera passa em revista, alucinadamente, os objetos desta vida passada e contada, desta vida cuja função atual consiste apenas em recolher os destroços, factuais, objetais (os bibelôs, as flores, etc) e orais (os “causos”) de uma trajetória passada.

Uma primeira questão que me intriga, e me leva a estabelecer uma conexão com o senhor de Phiro é que, no outro filme, o homem também se vê circundado por objetos, mas objetos que, ao contrário de Flores em Vida, não estão animados por nenhum “dínamo” afetivo (memórias, narrativas ou não). Estes são isolados de contexto (inclusive estilisticamente, pois vêm do nada e se perdem no nada, sem relação nenhuma com uma suposta vida pregressa ou mesmo presente do homem, que permanece afásico e imóvel, num canto do plano). Ao contrário de Flores, esses objetos não são situados numa experiência, narrativa ou metafórica, não pertencem ao personagem, que além do mais é afásico. Simplesmente entram e enclausuram o homem visualmente, pois limitam o seu ângulo de visão, em planos subjetivos que parecem uma versão perversa da interposição, nos filmes de Ophuls, do “fantasma da mercadoria” dos objetos entre a câmera e os personagens. Outros recursos estilísticos cumprem a mesma função: seu isolamento no canto extremo esquerdo de uma balaustrada; o uso do contracampo, que ilustra, de forma quase didática, a contraposição do sujeito e do mundo ao qual este não tem mais acesso; o uso de uma voz off ao telefone, uma voz que nada descreve, refere, infere ou sugere a respeito do personagem.

Seria este um filme extremamente acadêmico, rígido – uma representação estática que se incumbe de representar um ser estático – se não fosse pelo segundo ponto em comum que eu gostaria de destacar em relação a Flores em Vida: os objetos, assim como no outro filme, são passados e repassados com o virtuosismo de uma criança acostumada a passar as mil fases de um vídeo game – sem titubear, celeremente. Eles são varridos pela câmera. Em Flores em Vida, a câmera é uma espécie de cúmplice da presença da personagem, seus gestos e sua fala, sempre entrecortados, picotados, meio perdidos no furacão; ela emula esses gestos, esta fala, os imita. O que não ajuda em nada, pois sempre me pareceu que, em cinema, a relação mais fecunda é aquela que estabelece um conflito entre a representação e seu objeto (exemplo mais do que clássico: o ideal para dar a idéia de movimento é uma câmera fixa; ou o que faz um cineasta como Paradjanov com seus filmes-objetos, como bem diz Lourcelles, a partir de A Cor da Romã, por exemplo, que representa as rapsódias de seu povo, carnavalescas e exuberantes, com uma série de planos tableaux distanciados, hieráticos). Se, em Flores em Vida, a “ciranda” da câmera quer permanecer à escuta (ou mimetizar) a personagem, a agilidade inventariante de Phiro parece aspirar justamente ao contrário: vender os móveis, a casa, esquecer o velhinho - e o quociente de memória e afeto em reserva que este representa -, passar adiante a vida.

Mas o final de ambos os filmes é escapista: em Flores em Vida, a valsa final nega a esclerose, que ronda a exuberância do filme como seu duplo tentacular e fantasmagórico; em Phiro, o “Amor é tudo”, pronunciado pelo personagem no plano final, salva da morte, ou redime da afasia, que é a dimensão simbólica da morte. O escapismo nunca me pareceu um bom arremate, nem no trágico, nem no drama, muito menos no melodrama; pelo menos no primeiro e no último caso, já que se tratam justamente de radicalizações/aprofundamentos da experiência das coisas e do mundo, às vezes radicalizações tão extremadas que acabam por coincidir com a implosão do que se incumbem de representar, seja em Cartas a uma Desconhecida, Lírio Partido, Blackout ou Morte em Veneza: o Eu é um Outro. O escapismo – seja ele o dos musicais hollywoodianos à altura da Depressão ou dos filmes da Globo Filmes, embora este não seja o caso aqui – é o fetiche do imobilismo e do conformismo, seu partner ideológico. Neste sentido, os finais de ambos os filmes, com seu “otimismo de encomenda”, talvez sejam a derradeira (e cruel) pá de cal lançada à cova destes pobres personagens.

Janeiro de 2010

editoria@revistacinetica.com.br

« Volta