in loco - cobertura dos festivais
A Floresta de Jonathas, de Sérgio Andrade (Brasil, 2012)
por Pedro Henrique Ferreira

Florestas

Não são raros os filmes que, em vez de uma proposição política ou um rumo estético definido, se situam ambiguamente em um ponto limítrofe entre duas tendências completamente opostas. Ora vai em direção a uma, ora em direção a outra, sem aderir plenamente a nenhuma delas, ao mesmo tempo incapaz de conciliá-las, porque desconfia seriamente de ambas. Em alguns casos, o resultado tem um quê de histrionismo, de multimodalidade, uma inaptidão em seguir um lado e esquecer do outro. Em outros, um quê de síntese, de criação de um espaço onde ambos podem conviver. Mas há ainda uma terceira via, como é o caso do longa-metragem de estréia de Sérgio Andrade, A Floresta de Jonathas, que observa o conflito entre as duas tendências, porém já não se sente herdeiro da briga. E extrai sua força justamente desta capacidade de virar as costas e lançar-se ao nada em busca de algo novo.

Ambas as pulsões atuantes em A Floresta de Jonathas já são desenhadas ainda nos primeiros instantes, e a primeira parte do longa-metragem se dedica a evidenciar os algarismos deste conflito. Vemos a inaptidão de Jonathas (Begê Muniz) para lidar com o trabalho na floresta e na tenda de vendas à beira da estrada, em frente à casa de fazenda onde vive. A representação cabal deste modo de vida é o pai opressor (Francisco Mendes), um trabalhador ligado a costumes típicos. Do outro lado, está o irmão Juliano (Ítalo Castro), um rapaz despreocupado com o seu futuro, preguiçoso e mais interessado em relaxar, aprender uns passinhos de dança, curtir uma florestinha e azarar as visitantes que passam pela estrada. Seduzido pelo estilo de vida do irmão, mas ao mesmo tempo incapaz de imitar sua canastrice, Jonathas observa inerte este conflito que se desenha entre um Brasil ritualístico e uma juventude moderna, sem conseguir se posicionar plenamente frente aos dois.

Desiludido com a vida que o pai lhe oferece, Jonathas escapole do trabalho para um piquenique na clareira da floresta com o irmão e alguns amigos. O abandono voluntário do trabalho para passar uns dias de bobeira é em algo semelhante à motivação das figuras de Eternamente Sua, de Apichatpong Weerasethakul. Mas justamente o que neste seria um feelgood de descanso e comunhão com a natureza, vemos A Floresta de Jonathas se encaminhar cada vez mais para um sentimento de desorientação. A fim de agradar a ucraniana (Viktoryia Vinyarska) por quem se apaixonou, o rapaz adentra a floresta densa para encontrar um fruto mais raro. Põe-se em perigo por amor, para agradar a gringa (que por sinal, não pediu nada pra ele) e se perde do grupo. É então que a floresta deixa de ser um local de alívio do trabalho e se torna um ambiente selvagem.

Recriando uma experiência sensorial semelhante a um bom filão do cinema contemporâneo, num desenho sonoro intenso, enquadramentos muito imbricados nas matas, próximos do suor e das feridas de Jonathas, e outras cuidadosas formas de construção plástica, Sérgio Andrade cria um desnorteamento que reconfigura a própria imagem da floresta Amazônica. Se suas beiradas eram local de refúgio das verdades assertivas do pai, quão mais fundo se penetra no coração dela, mais ela passa a ser violenta: um espaço sem referências, de alucinações justificadas pela fome e cansaço dos dias sem comida e sem sono. O que se passa neste momento curioso é uma absoluta ressignificação do sentido que a Floresta Amazônica exerce na trama, uma ressignificação que já está anunciada mesma no título. Isto porque não é possível se falar em uma única floresta. O que está em jogo não é apenas uma delimitação geográfica, mas uma absoluta transferência da personalidade para este espaço-receptáculo. A floresta do pai é um local para se extrair e vender, uma extensão do trabalho em inúmeros sentidos. A floresta do irmão é um local de diversão, de escapismo. Mas e a floresta de Jonathas, o que é?

Imbricado entre duas florestas que não são suas, Jonathas terá de passar sozinho por esta jornada de perdição para conhecer seus sonhos, medos e desejos, tateando no escuro e pondo sua vida em risco para isso. Em certo sentido, é um correlato da jornada do diretor ao ter de lidar com um universo tão carregado quanto o indígena e a floresta amazônica, tão cheio de folclores e estereótipos que remetem à cultura nacional e de disputas que por muitas vezes extrapolam a esfera da imagem e se tornam conflitos políticos reais. Assombrado pela multiplicidade de imagens prontas, o que A Floresta de Jonathas reivindica é a possibilidade de interpretar aquela área à sua maneira, sem ter de repetir os outros, sem ter de aceitar as crises e promessas imbuídas em cada um dos lados, mesmo que no interior de sua floresta particular fique perdido, sem eira nem beira.

Mas no que é que esta experiência absolutamente pessoal vai dar? Esta dúvida quanto ao real efeito da reivindicação dá a curiosa sensação de desespero que ronda o último ato de A Floresta de Jonathas. A resolução final fica muito em aberto, talvez porque o diretor não saiba como solucionar o impasse milenar. Em seus rituais (um em que passa abacate no corpo), o pai pede o fortalecimento e regresso do filho, para, alguns instantes depois, encontrá-lo jogado na floresta. O longa-metragem não nos permite saber se ele vive ou não, ou, se ele de fato está vivo, o que acontecerá após esta experiência. O que vemos na última imagem é Juliano, o irmão pródigo, retornar à tenda onde trabalha, somente para, como sempre, abandoná-la de novo: sai andando pela estrada sozinho, sem rumo algum, em um plongée que nos impede de ver o horizonte, e cujo silêncio, somado à longa duração, cria uma literal falta de perspectiva.

Um plano correlato a este pode ser encontrado em Os Cafajestes de 1962, quando Jece Valadão lança um olhar para trás e nota o quanto sua grande jornada só fez com que ele mudasse. Todo o resto permanece o mesmo. Jonathas se perdeu em sua própria floresta, abraçou este espaço selvagem que o levou a uma experiência limite da qual não sabemos se ele sobreviveu. Mas quanto aos outros, nada mudou. Perdido no conflito entre duas tendências diferentes, entre um mundo ritualístico tradicional e uma juventude mais interessada em lidar com o estrangeiro – entre o passado caduco e o futuro incerto – A Floresta de Jonathas reivindica um presente absoluto, isto é, interpretar o mundo a partir de suas próprias experiências. Mesmo sabendo que isto talvez não dê em nada. E nesta jornada individual até o limite de um presente violento, que talvez signifique a própria morte, ninguém além de Jonathas se transforma – duas outras florestas continuam a lutar.

Outubro de 2012

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