in loco - cobertura do É Tudo Verdade
Fora de Campo, de Adirley Queirós (Brasil,
2010) por Cléber Eduardo
Resgate
da dialéticaFora de Campo é
realização para o DocTV de Adirley Queirós, em co-direção com Tiago Mendonça –
dois nomes a se anotar nos caderninhos, ambos ganhadores de edições recentes do
Festival de Brasília. Queirós é da Ceilândia, e faz parte da Ceicine, produtora
de diretores desta cidade-satélite do DF. Degrau a degrau, ele começa a atrair
interesse, ao menos de alguns olhos mais atentos e com chances de acesso ao seu
trabalho, sobretudo a partir do curta Rap: O Canto da Ceilândia, prêmio
principal de Brasília em 2005, mas também por conta de Dias de Greve, exibido
no ano passado e já bastante elogiado por aqui. Já Mendonça é o realizador de
Minami em Close-Up, ganhador de Brasília em 2008. Ambientado
na segunda divisão do Distrito Federal, o documentário trata do proletariado do
futebol, enfocando um jogador em atividade, Maninho, personagem mais forte e complexo,
mas também outros já aposentados. Um deles fez carreira na Grécia, outro foi ídolo
do Vila Nova, há os que vagaram, clube em clube, raros com alguma expressão. Não
estão em jogo os gols, os lances ou a mitologia dos boleiros. Está em campo, exatamente,
o trabalho. Não sem sonhos. Não sem memórias. Não sem orgulho de conquistas e
lutas que, talvez pequenas para nós, são a fonte da vida para eles. A utilização
do título é cinematográfica e futebolística. O fora de campo no cinema é um conceito
que extrapola a noção de fora de quadro (ainda parte do campo), pois, para além
de se relacionar com o não-visível, leva em conta aspectos da ordem do mundo extra
fílmico. No futebol, seria quem está de fora, não apenas das quatro linhas, mas
da imagem do futebol. Em parte do primeiro tempo, vemos apenas
passes de lado (do documentário, não dos jogadores). Se o tema fica claro logo
de cara, suas estratégias são frouxas. Um letreiro com dados sobre o futebol no
país, seguido de cena clichê de vestiário, com jogadores abraçados, entretidos
em palavras de reza e slogans de estímulo, não são imagens iniciais estimulantes.
Os primeiros muitos minutos não ajudam a desfazer a má impressão das duas primeiras
imagens. A ordenação dos fragmentos visuais e verbais pode gerar a impressão de
certa aleatoriedade, como se qualquer estrutura e qualquer imagem pudessem estar
ou não estar ali, sem uma procura pelo caminho mais apropriado e mais justo com
o universo escolhido para enquadrar. Vemos planos detalhes de chuteiras, um jogador
falando em salários atrasados, aposentados com saudade do campo, não sem reclamações
trabalhistas, não sem revelações econômicas, como o salário mínimo como salário
médio, em torno de R$500,00. No
entanto, se está clara logo nesse começo a disposição de mostrar um contra-plano
do futebol midiático, com imagens da precariedade material na qual está envolta
a segunda divisão e os jogadores, Fora de Campo não mostra, ao menos até
certo ponto, qual é sua tática de jogo. Entra na tela para dar chutão para frente
e para a lateral, para acionar os chuveirinhos e tentar chutes do meio de campo.
Parece mimetizar o espírito da segundinha de DF: bola pro alto. Quando a tática
se faz notar, porém, a partida começa a ser ganha. A montagem de aparência aleatória,
que soma planos em vez de relacioná-los, torna-se dialética. Imagens começam a
conversar, a se “justa opor”, em busca de conexões. Eventualmente, podem ser didáticas,
óbvias demais, mas produzem um pensamento. Se em uma sequência vemos um ex-ídolo
na arquibancada, dando autógrafos no Serra Dourada, em Goiânia, um corte nos mostra
o mesmo ex-ídolo com outro uniforme, não de outro time, mas de segurança de metrô
– invisível e anônimo diante da massa também invisível e anônima. Apagamento.
O mesmo vale para o jogador que, nos dias atuais, chuteiras penduradas, atua como
camelô. No entanto, se o documentário tem um centro nervoso,
ele é Maninho. Jogador com consciência política e social de sua atividade, ele
lida com o mundo da bola menos por inclinações subjetivas (presentes, mas discretas),
e mais por uma perspectiva do trabalho e do trabalhismo, seja denunciando cartolas
e clubes, seja cobrando de um político do futebol, na hora da comemoração do título
da segunda divisão em Brasília, que pague os prêmios atrasados. Maninho aproveita
a presença da câmera para expor a dívida e constranger o devedor. Ao lado, seus
colegas pulam, cantam, gritam, com estádio vazio. Essa consciência de Maninho
rege a dialética de Fora de Campo. Porque sua politização do futebol e
seu discurso de proletariado são mandados ao vestiário quando sonha com a possibilidade
de jogar em um grande esquete brasileiro ou mesmo internacional. Nas imagens finais,
quando seu clube, o Dom Pedro, que ele considera um grande time, joga a Copa do
Brasil. É seu grande momento na carreira. Chance de ser visto por um olheiro e
pela televisão. O adversário e vilão: o Botafogo, do Rio (quase uma ironia para
quem conhece o espírito derrotista e cético da torcida botafoguense). Maninho
termina olhando para o nada. Lágrimas nos olhos. Não é um
documentário sobre fracassos ou de luto, mas sobre trabalhadores com limites claros,
esforçados para sair da imobilidade social e econômica. É um documentário ao mesmo
tempo cruel, respeitoso e realista com o mundo enfocado e com seus personagens.
O fato de não querer potecializar esses personagens a qualquer custo, como parece
ser a tendência geral dos documentários brasileiros, o coloca em um contrafluxo
já forte o suficiente para lhe garantir um valor político forte. O fato de não
ver em seus personagens subjetividades apartadas do mundo, como se fossem em si,
já marca uma atitude de encarar o indivíduo em relação a seu entorno e em perspectiva.
Aqueles toques de lado iniciais, portanto, são esquecidos ao final. Vitória da
problematização sem amaciantes, do materialismo sem poesia reacionária, da poesia
em um mundo vacinado contra ela. Que a dialética seja resgatada ou será a vitória
da direita estética. Abril
de 2010
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