in loco
Afirmação política na busca de um cinema
por Lila Foster

É sempre um equilíbrio difícil de se alcançar, quando um festival pretende aliar uma pauta temática-política claramente delimitada e a representação desta na produção audiovisual contemporânea. A segunda edição do For Rainbow (Festival de Cinema da Diversidade Sexual de Fortaleza), que aconteceu entre os dias 5 e 9 de setembro, selecionou para a sua mostra competitiva 23 curtas e médias-metragens brasileiros concentrados em três noites de programação, além de mostras especiais programadas durante o dia. A impressão que ficou era de que existia, tanto da seleção como dos próprios filmes, uma urgência sobre o tema, sem que existisse uma vontade maior de cinema. A programação, incluindo as mostras paralelas, embora com exceções a serem louvadas (como a mostra dedicada ao cineasta americano Marlon Riggs, grande destaque do evento e que eu discuto em outro texto), estava repleta de exercícios de filmagem que esboçavam muito mais tentativas (algumas muito ruins) de expressão audiovisual. O difícil equilíbrio entre temática, ativismo e estética ficou extremamente evidente, configurando um desafio a ser enfrentado pelo Festival nas suas próximas edições.

Mas, essa sensação foi amenizada por filmes que traziam sim questões sobre a homossexualidade sem abandonar uma preocupação com a imagem e as formas de representação. De maneira muito acertada, o primeiro filme apresentado foi o documentário Cinema em 7 Cores, de Rafaela Dias, que traça um panorama da representação do personagem homossexual na história do cinema brasileiro. Feito a partir de uma rica pesquisa, o documentário intercala imagens de filmes com entrevistas de pessoas do meio audiovisual (a crítica de cinema Andrea Ormond, Karim Ainouz, o ex-Big Brorher Jean Willys, Sandra Werneck, entre outros) que chamam a atenção para um certo cansaço e obviedade causado pela repetição de estereótipos do personagem homossexual: a bicha perversa, o travesti vinculado ao mundo do crime ligando diretamente a imagem homossexual masculina a um universo de danação. O momento mais interessante do filme reflete sobre a aceitação de personagens homossexuais, desde que confortavelmente codificadas, como as fantasias de Oscarito travestido, bem aceitas pela sua dimensão cômica; ou o fetiche masculino pela imagem de duas mulheres transando – que se torna choque quando tem a sua chave invertida, como nas cenas de sexo masculino de Madame Satã. Reforçando a necessidade de se pensar em outras formas de representação diante de um déficit identitário – uma vez que é difícil se identificar, seja com a eterna marginalização ou com a imagem politicamente correta dos personagens gays em filmes como Amores Possíveis ou das novelas globais – Cinema em 7 cores funcionou como uma ótima introdução para os filmes que se seguiram, ao expor demandas em relação à representação da homossexualidade.

O caso do documentário é o mais marcante, porque o movimento de filmes como Amanda e Monick (foto acima, na abertura do texto), Homens e Singularidades é exatamente esse: mostrar o cotidiano de lésbicas, travestis e gays transformando em potência o que existe de normal e de extraordinário na vida dessas pessoas. Uma complexidade que põe em cheque muitas pré-concepções sobre a vida de casais homossexuais. Muito semelhantes no seu formato (documentários clássicos centrados basicamente em entrevistas), os filmes foram ovacionados durante a projeção, numa reação que destaca a particularidade do festival pela necessidade de afirmar positivamente a cultura LGBT.

Amanda e Monick, de André da Costa Pinto, traz duas personagens incríveis: Monick, uma travesti que engravidou a sua parceira que é lésbica; e Amanda, também travesti e professora de Monick, cujo o pai dá um depoimento extremamente emocionante de aceitação da sexualidade do filho. Tudo isso no interior da Paraíba, onde imaginamos que o preconceito seja mais acentuado. Homens (foto), de Lucia Caus e Bertrand Lira, também traz histórias tristes e felizes de homossexuais que vivem no interior do Nordeste, operando numa chave muito semelhante. Singularidades é um pouco mais plural e alia ao seu recorte a relação com a sexualidade e o envelhecimento. O filme se destaca pelos depoimentos emocionantes da relação de um casal de lésbicas com o seu filho gerado por inseminação artificial, sendo que uma delas desenvolveu, por acidente, um calo em forma de pênis em um dos dedos. Realizada pelos integrantes da oficina do projeto Olho Vivo em Curitiba, o documentário se destaca por ter um ótimo trabalho de decupagem das cenas que inserem os entrevistados nos espaços do cotidiano de trabalho e lazer e uma trilha que nos dá um respiro e afasta o filme do formato “cabeças falantes”.

Apesar de extraordinárias, essas histórias de vida que consideraríamos pouco comuns acabam por formar um retrato de normalidade. Esse aspecto “a vida como ela é”, de uma atenção ao cotidiano e longe dos códigos mais usuais de representação, também está presente nas ficções Café com Leite, de Daniel Ribeiro; e Depois de Tudo, de Rafael Saar. Premiado com o Urso de Cristal de melhor curta-metragem em Berlim, Café com Leite tem uma estrutura narrativa redonda, tratando dos dilemas de um jovem casal de namorados que se vê numa situação extremamente difícil quando os pais de um deles morre, deixando a guarda de seu irmão sob sua  responsabilidade. A estrutura do filme não se dá em função do drama vivido, mas da construção e possibilidades de novas formas de relacionamento, seja do irmão mais velho que se vê de repente como “pai” como do casal de namorados que vão ter que saber como lidar com a restrição da sua liberdade. Nada “sobra” e algumas situações voltam reconfiguradas em seu sentido, num trabalho de roteirização que opta por pequenos detalhes que identificam a transformação dos personagens nesse pequeno percurso.

Depois de Tudo é um curta muito bem roteirizado que não centra sua energia narrativa na “funcionalidade”. Nesse sentido, ele transita muito mais pelas sobras, por imagens que não apostam em um desenvolvimento narrativo, mas captam a intensidade dos momentos. Um casal de senhores, interpretado por Nildo Parente e Ney Matogrosso, se encontra em casa depois de um dia de trabalho. O primeiro espera fazendo a janta e o outro chega com o filme favorito do casal, o russo Quando voam as cegonhas de Mikhail Kalatozov. Eles jantam e vão se deitar. O som intenso do filme invade o silêncio do casal que se acaricia com uma reconhecível intimidade – atingida principalmente pela interpretação contida, mas muito intensa. No final, uma despedida bem triste de um casal que vive da espera para o próximo encontro.

A experimentação também esteve presente na mostra competitiva. Meu Namorado é Michê, de Lufe Steffen faz uma divertida brincadeira com um casal que tem que se separar para que um deles possa fazer um programa em casa enquanto o outro espera na rua. Filmado em super-8 e com trilha sonora da banda Blondie, a sensação é de estar vendo um filme da década de 60, não só pela textura da película, mas por um certo desbunde mais que saudável. Romântico, mas não sem uma dose de safadeza (os dois ficam bem felizes com o dinheiro que ganham no final), o diretor trata de uma situação insólita com um desprendimento e uma liberdade que faz do cinema uma aventura divertida e libertária antes de qualquer coisa.

Insólita também é a situação de , de Felipe Scholl, curta-metragem ganhador do prêmio Teddy Awards concedido pelo Festival de Berlim para filmes com temática gay. Num banheiro, dois jovens cheiram cocaína e tentam se excitar de maneira fria e automática como se o corpo fosse um dispositivo a ser ligado. O ambiente evoca o comum de sexo fortuito em banheiros, situação esta que parece exprimir uma relação sexual puramente instintiva e sem afeto, e o curta brinca com essa inversão. Se o sexo aparece como objetivo, e um faz de tudo para excitar o outro (sexo oral e dedo no cu, o curta faz questão de não tornar nada disso polido porque quer ser sacana, no bom sentido), o que se busca ali é uma relação com afeto e por isso o beijo será a chave do prazer.

O filme mais polêmico do festival foi o curta Filthy do coletivo Queer Fiction, de Porto Alegre, em que duas garotas entram num jogo sexual com um ursinho de pelúcia. As cenas de sexo explícito vão se intensificando com a extrema violência com que elas desferem golpes no urso que está recheado de vísceras. A trilha sonora com sons estridentes perturba, mas não tanto quanto as imagens da garotas praticando sexo oral em meio a carne e sangue. O choque e a violência das cenas de sexo explícito aponta para o limite da imagem que deixa de ser representação para se tornar um testemunho do ato em si. Sem ser uma unanimidade, Filthy foi o filme que mais desafiou o espectador. Neste sentido, ele operou em um extremo que não visa construir uma política de afirmação e sim, através do choque, tirar o espectador de sua própria pele para, pelo menos, despir o sexo de qualquer padrão.

Como um balanço final, vale dizer que a organização do festival, que teve o mérito de reunir diversos realizadores, jornalistas e críticos em torno de um debate importante, deve ficar atenta para as condições técnicas de projeção dos filmes. As sessões da mostra competitiva acabaram se tornando extremamente longas com o atraso, calor, um cerimonial desgastante e uma projeção deficiente. Os filmes captados em película foram projetados em vídeo e, mesmo que limitações se imponham às vezes, eles foram extremamente comprometidos pela má qualidade da projeção de imagem e do som. O tema não pode ser mais importante que do que os filmes e a exibição destes deve sempre ser o ponto central de qualquer festival de cinema. Em condições mais adequadas, o cinema São Luiz, antiga sala no centro de Fortaleza, poderá continuar sendo a sede perfeita para o Festival.

Setembro de 2008

editoria@revistacinetica.com.br

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