A
Fronteira da Alvorada (La Frontière de L'aube), de Philippe Garrel (França,
2008) por Paulo Santos Lima A
imagem da incerteza do mundo
Se a fotografia valoriza
o instante e o quadro, o cinema adverte que esse registro é limitado, pois é um
mero recorte do tempo e do espaço. E no mundo, as coisas não estão posando: elas
vivem, transformam-se, trapaceiam, vagam, são anjas e demônias, nascem e morrem,
estão aos borbulhos. Falado isso, não é fato irrelevante, portanto, que A Fronteira
da Alvorada tenha como protagonista um fotógrafo que tenta, como tal, controlar
as imagens que registra, aprisionar os objetos capturados por sua câmera, mas
esbarra no fato dessas coisas serem do mundo, que por sua vez está em moto selvagem,
digladiando-se consigo próprio, vomitando suas agonias e transmutando-se ad
eternum, como uma fera lutando pela vida. Não é por acaso, também, que o diretor
deste filme seja Philippe Garrel, cineasta que, ao lado de Godard, mais contundentemente
vem falando do pós-68, ou seja, de um projeto que morreu e de um processo histórico
que prossegue a todo vapor transformando as coisas, matando algumas e seguindo
avante com tantas outras. A
Fronteira da Alvorada é, aparentemente, um filme de amour fou, no qual
um fotógrafo (François, por Louis Garrel) começa um romance com uma atriz (Carole,
interpretada por Laura Smet), logo após fazer uma sessão de fotos bastante interrompida.
Carole é de uma beleza emocionante, rosto de musa e corpo de fêmea, equilíbrio
de linhas e formas fenomenal, mulher para se assistir e também tocar. Mas esse
corpo de mulher é conduzido por uma mente flanada, que “corta o plano-sequência”,
esparrama-se para outros ombros, sai da cena, reaparece com ar dúbio, voa incerta.
Carole escapa do plano, o que é um pesadelo para alguém como François, que captura
e confina as coisas com sua máquina fotográfica. E ele, fotógrafo que não só acredita
na captura e confinamento das coisas como peleja encontrar algo além da superfície
e da bidimensionalidade alcançadas pela máquina fotográfica. Assim,
mesmo tendo-se o índice do amor entre os dois como algo concreto e real no filme,
há lacunas que intrigam não apenas François, como a todos em contato com as imagens.
Isso está no próprio modo como Philippe Garrel trabalha com o desfoco na profundidade
de campo e uma relação entre o quadro e o extracampo que nos deixa órfãos de alguns
códigos. O mundo é composto do intra e do extracampo, e jamais teremos acesso
a tudo. François não aceita esse acesso restrito, e, sem poder confinar sua Carole
no terreno seguro do plano enquadrado, sem poder transpor o limite dos seus olhos,
corpo e lente (ou seja, o limite daquilo que separa o visível do invisível, ou
melhor, o externo do mental-emocional), decide abandoná-la. Troca-a
por Eve, que é seu avesso: mais transparente, decodificada, namoradinha, de uma
planura total. A imagem de Eve, no caso, é de natureza oposta à de Carole: se
o rosto desta última recria a aura da imagem-culto (e da femme fatale),
a bonitinha Eve tem o rosto comum da convenção “realista” que ilude na idéia do
acesso total às coisas. É bastante interessante, inclusive, como Garrel trabalha
essas duas moças. A imagem de Eve, mulher comportada e de formas mais “normais”,
comuns, está mais para um ideal, sendo uma “imagem vazia”. A imagem de Carole,
de uma beleza e sensualidade celestiais, rosto no qual a luz utilizada pelo excelente
diretor de fotografia William Lubtchansky ilumina em espetacular reflexo alvo,
corpo que aguça o mais morto dos homens: ela é mais concreta, estimulante. Em
todo caso, a idéia aqui é perpassar o cinema de corpo e o cinema de idéias. Um
exemplo está quando Carole, que antes do abandono fazia uma ótima equalização
do seu encaixe no espaço filmado, quase uma ninfa alada, de andar elegante e imagem
de modelo impecável, perde o controle do corpo, enguiçada sob o gim e o desespero,
deixando-se cair pelo chão, desgrenhar-se, fazer movimentos esquálidos e soluçados.
Em vias de se matar, ela grita frases conteudísticas a ver com as insurgências
políticas, frases slogans que a personagem jamais recitaria. São frases
de Garrel, que vivenciou o tema: as barricadas, as insurgências estudantis e intelectuais,
os projetos políticos e estéticos, os debates, a clareza de onde estava a ravina
a ser conquistada. O filme é Garrel. Ou, o filme é feito
por um cineasta que não revisa, mas sim põe em perspectiva todo um fazer cinema
herdeiro da modernidade dos anos 60. Num momento de “vale tudo”, como o nosso,
em que tudo é pântano e laje ao mesmo tempo, em que o “velho cinema” assiste à
chegada de um “jovem cinema” que confunde-se num “novo modelo de mercado”, o único
modo de filmar essa agonia é reproduzindo-a com igual hemorragia na tela. Assim
sendo, se na superestrutura a relação câmera-objetos já revela uma ótima ambigüidade
entre o cinema físico e o cinema de luz, será na macroestrutura que Philippe Garrel
mostrará um cinema de identidade múltipla, em que está claro o parentesco com
a nouvelle vague (as introspecções e uma truffautiana necessidade
de liberdade por parte de François), mas que adota um pan-procedimento narrativo
– vai-se do tal amour fou ao filme fantástico, e a fotografia PB consegue
se fazer inicialmente num “naturalismo” à la filmes de rua da nouvelle vague
em que tudo acontecia no calor da ação aos formalismos da arte “bonita” e dos
filmes de fantasma, nos quais a pose era essencial (e que faz merecer a lembrança
ao que escreveu Eduardo Valente em sua cobertura
de Cannes 2008 sobre o filme remeter a Cocteau e Méliès). Garrel
filma nos anos 2000, e seu cinema está, portanto, devidamente contaminado pelo
nosso tempo, este da crise dos paradigmas. Seu filme grita, usa desesperadamente
pedaços perdidos no meio do caminho da história do cinema (história do Homem,
portanto), consegue transparecer à tela a agonia do cinema em nosso tempo, debatendo-se
entre o natural ao sobrenatural das imagens para lançar algumas questões cruciais.
A mais interessante é defesa da imagem transitória, que passeia e se debate com
o mundo, que passa muito além de nosso campo de visão, que preserva infinitas
ambigüidades, vai a planícies de luz e desfiladeiros de sombras, céu aberto e
noite enevoada. É mais um filme feito em momento de agonia e crise do que uma
obra desesperada. A jogada de toalha do protagonista, que opta pela morte para
poder estar ao lado de uma Carole falecida e devidamente domesticada e confinada
(num espelho, cuja ótica é parente do cinema e da fotografia, em seu jogo reflexivo),
deixa claro: a imagem da vida passeia distante das certezas funéreas. Setembro
de 2008 editoria@revistacinetica.com.br
|