Violência
Gratuita (Funny Games US), de Michael Haneke (EUA, 2008) por
Francis Vogner dos Reis Estilo
domesticado
Uma família é feita refém em sua casa
de veraneio por dois rapazes uniformizados como ajudantes de golfista. Não temos
mais informações sobre os psicopatas, somente a de que eles já passaram por outra
casa nos arredores. Eles se divertem fazendo um jogo de crueldade e tortura com
a família. A história é original do filme Violência Gratuita (Funny
Games), de 1997, e se repete agora, em 2008. Aliás, não só a história se repetiu,
mas a ladainha sobre o filme é praticamente e mesma, com a sutil mudança de se
ver a refilmagem como uma preguiça conceitual. De qualquer maneira, é um equívoco
ver o novo Violência Gratuita (Funny Games “US”) como um projeto
somente oportunista. Por mais que tenha certa dose – típica – de picaretagem do
seu diretor, a refilmagem do filme original de 1997 é uma declaração de princípios
do cineasta: os filmes de Haneke tem uma estrutura tão programada e se estabelecem
como um jogo demasiadamente controlado que são impermeáveis a qualquer elemento
que fuja do esquema proposto de antemão. O mero gesto de um personagem é uma matemática,
a entrada e a saída do quadro é uma irredutível coreografia. Desse modo, refilmá-lo
é mais uma afirmação (e explicitação) do método do cineasta do que um estéril
trabalho de decalque. Assim, o interessante é ver que seu
impacto não é a da surpresa de roteiro, a dos adornos de estilo, mas da força
que emerge do seu método, que na visão (ou revisão) de Violência Gratuita
nunca faz envelhecer seu vigor, seu “efeito” sensorial. Por exemplo: quando vemos,
em um plano geral, o vizinho da família protagonista olhando-os ao longe ao lado
de supostos ajudantes de golfe, ou quando o garoto avisa a mãe na cozinha de que
tem alguém na porta de entrada, não
é preciso mais informações, não é necessária montagem ou qualquer artifício que
empreenda mal estar, seja música ou qualquer trabalho de banda sonora. O plano
fixo (e distante) estabelece essa relação – entre ação e espectador – pretendida
pelo diretor. É como se nada pudesse ser feito, tudo já estivesse dado, só sendo
possível testemunhar, e o pior: o olhar do psicopata interpretado por Michael
Pitt para nós (público) não é de cumplicidade, mas a confirmação que o espetaculozinho
de horror é um “mimo” para o espectador, que na visão de Haneke é um sádico, se
o deleite não oferecer resistência, ou um hipócrita, caso ele rejeite a proposta,
pois o diretor leva em conta que o lugar do espectador é o do tarado que quer
ver o circo pegar fogo. Como já se disse (e se repetiu) em
tudo o que geralmente é vinculado ao diretor Haneke (“talento com crueldade”,
é a imagem mais comum), o diretor acaba figurando como um agente do mal. De fato
Haneke é um algoz, sadicamente feliz, mas esse seu sadismo está atrelado obrigatoriamente,
à sua capacidade de encenador. Ele é sim um cineasta da encenação, mesmo acreditando
nela como um procedimento rigoroso de exercício de taras, tão calculista e excessivamente
programado que o autoritarismo natural em toda e qualquer mise-en-scène
vira fetiche: centro, começo meio e fim. À relativa exceção de Caché (seu
melhor trabalho, porque cheio de fissuras), seus filmes são fechados, marcados,
posados e duros. Integridade? Difícil negar que de fato há, mas essa integridade
é carente de respiração, que é a responsável pelo encontro entre o controle do
cineasta e a urgência do imponderável na criação artística. Portanto,
o método de Haneke soma uma má consciência de certa idade do cinema moderno (a
consciência do espectador “participante” aqui é uma deformidade) com o uso intenso
e integral de boa parte dos recursos cinematográficos mais tradicionais de som,
imagem, quadro e corte. É como se esse cinema, ao mesmo tempo em que colocasse
em evidência todo o mecanismo e aparato de um filme – dentro e fora da tela -,
fizesse disso tudo um exercício de auto-consciência que vale somente pelos estragos
que pode causar, não pelo que pode propor. Apesar de parecer transparente, sem
segredos e direto, Violência Gratuita é uma enganação. Existem as formas,
elas são duras, de composição por vezes impecável, mas que domesticam o estilo.
Estilo, sabemos, é o que dá personalidade – e vida – a qualquer trabalho artístico.
Temos, entretanto, um receituário, um mecanismo de funcionamento de formas elaboradas,
mas tão absolutas que o filme morre por asfixia. Ver
Violência Gratuita “United States” em um panorama de marasmo – o estado
atual do circuito de cinema – não o torna melhor, mas pelo menos o faz mais instigante
porque existe ai um projeto de cinema levado a cabo pelo cineasta, que teve coragem
de fazer escolhas, se confrontar com elas e com seus limites, mesmo que ele tenha
dificuldade em transcender a mera, e medíocre, visão do filme como playground
de vilania. O trabalho de Haneke estimula, diferente de boa parte dos filmes em
cartaz (sobretudo os filmes de “artistas” e de festivais), uma vontade de se posicionar
com relação a ele. E há um impulso crítico simples e hoje tão esquecido que é
defender princípios (já que fazer crítica não é emitir diagnóstico, mas se posicionar),
não no que diz respeito à moral corrente (ou a um discurso ético essencialista),
mas sim a uma visão de cinema, do que ele é, do que ele foi, do que ele pode ser.
Apesar dos pesares, a versão americana de Violência Gratuita coloca um
projeto de cinema em questão. Em uma época de modismo e de pragmatismo, de quantos
filme pode se dizer isso? Outubro de 2008
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