Gainsbourg - O Homem
Que Amava as Mulheres
(Gainsbourg - vie héroïque), de Joann Sfar (França,
2010)
por Fabian Cantieri
A
sedução do cinema
Se, ao longo
da última década, o gênero das cine-biografias
musicais foi se consolidando como um filão oportuno (vide
Ray, Johnny & June ou até mesmo indies
como O Último Garoto de Liverpool), algo
de bastante velho se sucede em suas criações. O
ponto de partida de praxe no cinema é o mesmo de qualquer
outra biografia escrita: além de uma certa qualidade musical
comprovada, pressupõe-se que o roteiro só comece
a partir do momento que existam extratos de vida fortes o suficiente
da pessoa biografada. Piaf é uma grande surpresa
de jurisprudência proveitosa. Gainsbourg é
um sopro que, sem abdicar, contorce e surpreende um pouco essa
lógica.
Certamente, não é o primeiro filme da seara a tentar
algo por novos caminhos. Parece estampado ao longo da projeção
um autor que viu I'm Not There e descobriu novas e interessantes
possibilidades de um constructo dramatúrgico para
o filão. De novo, nada de realmente revolucionário
- um sopro só se transforma em tufão nos efeitos
borboletas das mentes de cada espectador. Pois se Buñuel
ensinaria que nem sempre o realismo é o caminho necessário
a se tomar, Joann Sfar toma a velha lição do velho
espanhol, adicionando à dose o ensinamento das muitas vidas
de Dylan que não cabem em uma só pessoa. Com isso,
assume o lado irrepresentável do mito e abraça a
idiossincrasia do olhar. A partir de tal compreensão, ele
avança para a pujança de sua própria relação
com o "objeto", Serge Gainsbourg, e com isso desnorteia
qualquer cerceamento histórico. Não que ele deixe
de usar os tais extratos; quem visse só o trailer, poderia
pensar que seria um filme exploratório de seus affairs.
Mas é, de fato, como se insere o toque prático dessa
relação: não só a ponte básica
autor-filme remetendo ao que enquadrar, quando cortar e como colocar
suas peças no jogo, mas a do admirador-objeto na qual ele
insere pontos fantasiosos provenientes de uma experiência
prévia que teve com a obra de Gainsbourg.
A
grande estratégia de Joann Sfar parece soar esperta demais
até mesmo para ele próprio, pois é destrinchada
numa cartela no primeiro segundo dos créditos finais: "Eu
amo demais Gainsbourg para trazê-lo ao real. Não
são as verdades de Gainsbourg que me interessam e sim suas
mentiras." A ficção é enraizada na mentira.
O conto (como o filme se declara nos créditos iniciais)
pressupõe invenção, imaginação
e conseqüente fulguração de uma imagem, seja
previamente física (a própria tela, no caso do cinema)
ou na mente de quem a recebe. Mesmo que gratuitamente jogada,
é a declaração que revolve ao filme inteiro,
que revolve ao cinema. É a descoberta dos Lumière
que pode simplesmente registrar incólume trabalhadores
saindo de uma fábrica ou coordenar seus corpos numa determinada
instância espaço-temporal para que gere um específico
resultado. No final, o que importa é providenciar uma experiência
de mundo para o outro.
Na primeira cena do filme, Lucien, na praia, pede pra segurar
a mão de um menina da sua idade. Ela se nega pois ele é
feio e isso é sua constituição primária.
No plano seguinte, um casal de adultos passa por ele, o homem
joga o resto de cigarro na areia e Lucien apanha-o e fuma. Gainsbourg
reverterá a recusa que o mundo toma contra ele em condição
de luta, alcance, aceitação e realização. Mais
do que um músico renomado, não à toa, estamos
falando de um sedutor nato. O mais feio dos feios assume sua condição
para chegar à mais bela das belas (e são muitas),
tudo pelo viés da arte da conquista. Afinal, o que é
a ficção senão uma grande e atraente mentira,
e o cinema senão a mais pura forma de sedução?
Agosto de 2011
editoria@revistacinetica.com.br |