Gigante, de Adrián Biniez
(Uruguai/Alemanha/Argentina/Holanda, 2008)
por Rodrigo de Oliveira

“Esta é a imagem que o cliente tem de mim”

A frase do título do texto aparece colada no alto do espelho onde os funcionários de um supermercado uruguaio precisam se arrumar diariamente antes de encarar o trabalho com o público. Quando Jara, o segurança grandalhão de Gigante, aparece diante do espelho, fica evidente que sua imagem é daquelas que não se quer ter associada a qualquer negócio – salvo os negócios do cinema de sensibilidade duvidosa, cheio de tiques de emudecimento como valor estético a priori, onde opera uma questão de economia, matemática estrita em toda sua armação estrutural de silêncio absoluto+planos fixos longos e personagens erráticos=vida. Essa é uma conta que nunca fecha, não importa o quão insistentes estes filmes sejam.

De fato, o importante da frase é menos a imagem e mais a idéia de que ela precisa servir a uma clientela, e os primeiros momentos do filme de Adrián Biniez não escondem que ele está jogando para a platéia consumidora desse tipo de desafeição ao mesmo tempo corpórea e conceitual: temos, de um lado, um ogro em busca de uma princesinha, e todo o trajeto marcará sempre que seu ponto de vista é o da distância intransponível (ou desse “abismo que separa a todos nós”); do outro, uma busca que se dará via câmeras de vigilância, um dispositivo pronto a todo tipo de elucubração gaiata sobre o domínio do olhar no mundo de hoje: a vídeo-perseguição do indivíduo por um observador que nunca se anuncia, a câmera tão disseminada por todos os espaços de convivência humana a ponto de ressurgir aqui como o único lugar onde uma história de amor moderna pode se dar. Sorte nossa, e de Gigante, é que toda metáfora cabível sobre o dispositivo da vigilância não é mais que um artifício, como bem são os planos fixos alongados, a direção de atores abusando do primitivismo de seu “homem das cavernas”, a encenação que desconsidera qualquer coisa próxima a uma pulsação, algum batimento cardíaco não-pixelizado pela imagem em preto-e-branco tomada do alto de uma parede. Porque o que interessa a Adrián Biniez, de verdade, é outro conceito: Gigante é a tentativa de sobrepor à estrutura da desafeição estética uma outra, mais antiga e aparentemente incongruente à primeira, que é a comédia romântica. Ou mais radical que isso, a da comédia de gags pura e simples.

Jara não é um descendente proto-camusiano encarnado num Lee Kang-sheng qualquer. Desde as primeiras aparições de Horacio Camandule em cena, devorando rosquinhas enquanto se distraí do trabalho de vigilância, atrapalhado com uma revistinha de palavras cruzadas ou brincando de ser Rocky Balboa com o colega segurança, fica claro que Biniez quer mesmo é retirar o Shrek que ele sabe existir em seu personagem. Há um quociente psicótico claro neste sujeito que é incapaz de se aproximar fisicamente de seu objeto de desejo (não à toa, uma jovem magra e linda, em oposição a seu porte mastodôntico), e que por isso mesmo começa a persegui-la de maneira obsessiva. Mas há algo no modo de operação de Jara que acaba contaminando a maneira como o próprio filme lidará com esse limite entre a afetação distanciada e o risco de contato. O segurança não apenas observa, ele de fato intervém na vida de sua amada, tenta cercá-la de todo mal através de uma série de instrumentos que sua posição de poder diante do monitor de vídeo oferece.

Como em todo conto de fadas, há o patrão malvado, o príncipe encantado mais bonito que o sapo, as pequenas falhas de caráter da mocinha que, na verdade, só a deixam mais encantadora, e para cada problema surgido, o segurança consegue rapidamente arranjar uma saída pela tangente. Do mesmo jeito que Jara só consegue agir no entorno, o filme também trabalhará provocando uma seqüência crescente de situações que, diferente desse cinema que acredita que alongar o plano é emular “o tempo da existência”, estão ali se anunciando como criações pensadas, como uma peça de ficção que opera pela causa-e-conseqüência mais estrita (o timing desse tipo de comédia, afinal, não tem nada a ver com o tempo da vida: precisa da agilidade, depende do corte muito mais que do plano-seqüência – no que aliás Biniez se distancia de sua referência contemporânea mais próxima, Aki Kaurismäki). O que tira Gigante desse corpo de cinema em que, a princípio, ele parece afundar, é que aqui não se tem vergonha nenhuma de sujar as mãos.

Não à toa, as várias imagens de vigilância que teremos no filme não registrarão nunca os clientes do supermercado. O interesse de Jara é numa funcionária, o interesse do filme é na interação entre eles, não há tempo a se perder com aquilo que não colabora para o acúmulo de esquetes que se quer produzir. E é esse o espírito mesmo: temos a cena clássica do sujeito que fica mudando de fileira o tempo todo no cinema para chegar mais perto de sua amada e, no caminho, enchendo o saco dos outros espectadores (isso é Seinfeld, não Kim Ki-Duk); a porrada no taxista que ousa chamar a mocinha de “gostosa”; o acionamento proposital do sistema anti-incêndio para evitar um desastre afetivo (isso é de filmes do Ben Affleck, não do Lisandro Alonso). Quando finalmente o feitiço virar contra o feiticeiro, e for Jara o objeto de atenção das câmeras, Adrián Biniez entregará de vez o seu projeto de cinema: Gigante quer significar mais que apenas o tímido conto moral brutamontes que descobre saber amar. É também um desafio à moda Davi e Golias do pequeno gênero fútil que, atrevido, vampiriza a grande estrutura estética vigente num certo circuito de arte – justo ela, tão afeita a esse tipo de estratégia. Não se tira daí mais que um bom exercício de engenho dramático e apelo à ingenuidade. Mas pode ser exatamente isso que se precise fazer para que, a essa altura do campeonato, um final feliz pareça feliz de fato.

Agosto de 2009

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