Confissões
de uma Garota de Programa (The Girlfriend Experience), de Steven Soderbergh (EUA,
2009) por Julio Bezerra Apatia
da imagem
Este mais novo filme de Steven Soderbergh
centra suas fichas em Chelsea (vivida pela atriz pornô Sasha Grey, que, aliás,
costuma se referir ao seu ofício como “arte performática”): ela vive e trabalha
em Manhattan, divide um loft luxuoso com o namorado personal trainer, e
cobra US$ 2.000 por hora. Acompanharemos sua rotina em formato de diário. A cena
de abertura narra o encontro com um cliente. Eles jantam em um restaurante da
moda e discutem sobre o filme que acabaram de ver (O Equilibrista), antes
de se retirarem para um hotel, com direito a café da manhã no terraço, no dia
seguinte. Estamos em outubro de 2008, o mercado acionário está em queda, e a maioria
dos endinheirados clientes de Chelsea se encontra à beira de um ataque de nervos.
Uma questão se impõe de imediato: é sempre intrigante ver um cineasta lidar
com o presente imediato, a tratar da erupção das ansiedades contemporâneas no
momento em que elas acontecem. A segunda parte de seu filme sobre Che Guevara
ainda nem estreou por aqui e Soderbergh já está novamente em circuito. Trata-se
de um cineasta prolixo, com passagens alternadas entre os estúdios e as produções
independentes. O curioso, contudo, é que este vai e vem sempre pareceu menos fruto
de uma contingência de produção do que uma necessidade pessoal de se manter na
ativa. Confissões foi filmado em Manhattan, em outubro passado, em meio
à chamada crise do sub-prime, e, embora alimente uma certa ambivalência, é crítico
em relação a um determinado estado de coisas da sociedade americana. A
postura crítica, com um objetivo de “denúncia” em seu horizonte, é por si só outro
dado curioso. Afinal, Soderbergh vem de um trabalho cuja marca maior era justamente
o esforço declarado em despolitizar a figura de Che Guevara. Coincidência? Difícil
dizer. De qualquer maneira, o que se percebe em retrospecto (desde Bubble)
é talvez uma certa continuidade de estratégias e procedimentos. O predomínio é
da ordem do factual, do processo: a câmera se posiciona de forma a pouco acrescentar
à dinâmica social observada pelo filme; os personagens são menos encenados do
que vigiados. Soderbergh aposta mais uma vez em um certo distanciamento. Seus
filmes salientam elementos de dispositivo que sublinham e lembram permanentemente
seu caráter artificial. Seria uma tentativa de evitar qualquer adesão à história
contada em prol de uma distância crítica? Poderíamos falar em crença na tomada
de consciência da parte do espectador? Ou Soderbergh estaria atrás de “autenticidade”,
encarando a câmera digital como um poderoso instrumento de neutralidade? Vamos
com calma. Chelsea
é vigiada em um momento complicado. Ela tem lá as suas preocupações: o lançamento
de uma grife, otimizar o seu site pessoal, competir com outras meninas em seu
segmento (ela acaba recebendo uma análise contundente de um “especialista”). O
cineasta embaralha a cronologia dos acontecimentos, flashbacks e flash-fowards
desfilam indistinguíveis uns dos outros. O filme segue costurado por trechos de
conversas (entre Chris e Chelsea, entre eles e seus clientes e amigos) muitas
vezes sem nenhuma ligação aparente. Soderbergh (ele assina a fotografia sob o
já manjado pseudônimo Peter Andrews) filma tudo de modo preferencialmente estático,
direto e frontal. Os enquadramentos tentam instalar os personagens em recortes
sintéticos pra lá de estetizados, fazendo uso muitas vezes de um contra-plongée
com pretensões artísticas (opção, aliás, muito marcada em sua filmografia). A
câmera precisa quase sempre driblar os mais variados objetos em primeiro plano,
aposta em um jogo de constantes desfoques e em uma luz nebulosa, acentuando a
frieza clínica da mise-en-scène. Em miúdos: Soderbergh se apóia na apatia
da imagem e não em uma imagem da apatia. Mais uma
vez, o grau de programação é evidente, seja em relação aos diálogos, à construção
dramática, ou à composição das cenas. Tudo soa como pretexto para se fazer um
determinado jogo de composições, uma certa geometria de planos e pontos de vista.
Soderbergh não é o primeiro cineasta a ser “acusado” de gostar mais das técnicas
cinematográficas do que de seus personagens. A diferença é que nesse caso parece
cada vez mais verdade. Soderbergh empurra seus personagens para dentro de suas
estratégias. O filme transforma suas criaturas em marionetes de um determinado
exercício cinematográfico, e de um vago, porém presente, discurso moral. Isso
porque Soderbergh parece encarar a crise econômica e seus personagens em tom de
leve deboche. Chelsea vive sua vida segundo a numerologia – o que ironicamente
a coloca no mesmo barco de seus clientes – e deixa Chris por um cliente cuja data
de nascimento combina muito bem com a dela. Chris só existe como contraponto e
complemento de seu par feminino. Mais do que isso, um paralelo entre a profissão
dele e a de Chelsea é estabelecido pelo filme: “Let’s have you look at a bigger
package... I dont think this relationship is going to end anytime
soon”, diz o segundo a um cliente. A
relação entre os personagens do filme é toda marcada por essa linguagem, digamos,
publicitária, pelo imperativo econômico. O capitalismo amplia sua esfera de atuação
colonizando sentimentos e práticas humanas que ainda estariam fora do alcance
do mercado (Guy Debord está logo ali). Em determinada cena, um jornalista insiste
em extrair de Chelsea um segredo qualquer sobre sua personalidade. Ela hesita,
resiste, e não revela. Seria esse o limite moral que ela se permite ultrapassar?
Não me parece. Afinal, cenas mais tarde ela convida o namorado para uma entrevista
com o insistente repórter. Nós podemos nos perguntar sobre o grau de autenticidade
de Chelsea, questionar se o que se atribui à superfície, a essa imagem de garota
de programa de luxo, tem alguma correspondência com uma profundidade (esta sim
supostamente autêntica ou real). Ora, a interioridade perdeu seu “privilégio”
como dimensão autêntica e verdadeira, não obedecemos mais cegamente à lógica que
associa a aparência e a banalidade aos domínios do falso. O que este filme nos
lembra é que, na superficialidade estética pós-moderna, o que é deixado para trás
ou por trás da aparência, da máscara e do artifício, não é mais verdadeiro que
o que se mostra. Chelsea não responde ao jornalista por não ter mesmo o que dizer:
não há nada. O que vemos é uma existência vazia e muito pouco sexy. Soderbergh
não avança para além do fato já conhecido, e conduz a impessoalidade de suas imagens
a um tom sutil de anedota (algo que talvez se aproxime do trabalho realizado em
Bubble). Chelsea, por exemplo, está sempre esbarrando com pobres músicos
de rua, e a música deles invade a trilha do longa. E o que dizer da seqüência
que fecha o filme? Chelsea tem um encontro com um judeu corpulento, dono de uma
loja de jóias. O personagem é o único dos clientes da personagem que não poderia
ser descrito como um yuppie, e sua aparição parece no mínimo estranha.
Antes de abraçá-la estranhamente em roupas íntimas, ele a aconselha a votar em
McCain. Soderbergh monta a cena com um crescente ruído na faixa sonora e um corte
abrupto para os créditos. Fica, então, claro. Estamos diante de uma pequena piada.
O filme coloca a nós e a si mesmo acima de seus personagens. Setembro
de 2009 editoria@revistacinetica.com.br
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