pariscópio
As mil faces de Godard: exposição/instalação
por Cezar Migliorin
Godard, novamente
A exposição Voyage(s) en utopie, à la recherche d’un théorème perdu
é caótica, grandiosa, irônica, afetiva, histórica,
intelectual, iconoclasta, política – e tantos outros adjetivos
que já foram usados para falarmos de Godard. É uma obra completa
que, em um das salas (são três - veja
um mapa da exposição), explicita a obra que
ela não é – já que inicialmente o museu programou a exposição
Collage(s) de France, archéologie du cinema, d’après JLG. Esta, por razões “financeiras, técnicas
e artísticas” não pôde ser realizada, como nos informa um cartaz
em uma das salas, assinado pelo Pompidou.
Voyage(s) en utopie
é uma obra inacabada,
com tevês de plasma empoeiradas em um canto, marcas e textos que
parecem ter sido apenas indicados no chão e nas paredes, pedaços
de revestimento de piso espalhados, muitos fios pendurados, folhas
com indicações dos procedimentos a serem tomados na instalação
e muitas maquetes de salas que ali estão apenas pela metade.
Uma das maquetes mostra uma cama com três quadros
pendurados à esquerda, um deles parecendo um Matisse, e um grande
monitor à direita. Na mesma sala onde há esta maquete vemos a
cama, um Matisse (ao lado de uma tela de Hans Hartung e outra
de Nicolas de Stäel), mas não vemos o grande monitor. Assim a
exposição se constitui: um tanto fugidia, materializando um projeto
e incorporando os planos para este projeto – mas, ao mesmo tempo,
deixando ainda infinitos outros projetos a serem realizados a
partir das composições e montagens possíveis com o que está ali.
Nossa atenção, nesta obra de Godard, transita, como é de costume,
entre o que se atualiza, entre o que ganha materialidade e o que
permanece apenas indicado como potencialidade daquelas imagens
e objetos.
Dentro das maquetes as telas que ocupariam – ou
que ocupam – o espaço da galeria são indicadas com ipods.
Mas, do lado de fora, estas micro-telas ainda existem: dois celulares
estão pregados na parede com um arame. Estes procedimentos nos
jogam para o interior das maquetes, como se tivéssemos, nós mesmos,
habitando a obra em construção, a obra que ainda está sendo pensada,
organizada. O que vemos na maquete, não é mais acabado do que
o espaço da galeria. Como se por um momento tivéssemos um acesso
privilegiado ao interior do pensamento. Um pensamento se constituindo
em torno de um acúmulo de imagens e sons, memórias e projetos
futuros.
A gigantesca dimensão desta obra está justamente
na explosão de sentidos que ela nos apresenta, como se este mergulho
godardiano no pensamento com as imagens fosse uma frustrada
tentativa de uma obra total. Frustrada, pois Godard jamais acreditaria
em tal possibilidade, o que não o exime da responsabilidade de
experimentá-la. O mergulho não é, na verdade, em um passado dos
filmes e citações, mas em múltiplas co-presenças temporais encarnadas
no que nos é apresentado. Para isso, a literatura, a escultura,
o cinema, a TV, a música, a pintura são chamadas para compor esse
todo ao mesmo tempo racional e sensorial, aquém e além do sujeito
Godard.
Há bastante ironia nesta obra, e uma das faces
desta ironia reside na maneira com que Godard trata as imagens
que ele leva para o interior da exposição. São imagens do mundo
que são tratadas sem nenhuma hierarquia. Clássicos de Hollywood
habitam o mesmo espaço de filmes como Don Quixote (inacabado),
de Orson Welles ou Arsenal, (1929) de Alexandre Dovjenko
e de imagens ao vivo da TV, que vemos em duas grandes telas de
plasma deitadas sobre uma mesa. No interior de uma das maquetes,
um rascunho de uma animação bastante ingênua está ao lado de um
filme pornô exibido em mais um ipod. Esta multiplicidade,
desierarquizada e em construção, acaba por constituir duas camadas
para estas imagens: por um lado é a própria história do século
XX que está ali, tanto na tecnologia de criação de imagens em
movimento quanto nas imagens que o século criou; e, por outro
lado, é no cruzamento infinito entre estas mesmas imagens que
a exposição permite uma multiplicação de montagens (mesmo que
aqui não se trate de uma montagem cinematográfica, mas de uma
colocação em relação).
Um excesso de imagens que não forma um corpo ou
um organismo, mas espaços entre corpos e imagens, viagem e nomadismo
de sentidos que não se territorializam em nenhuma das imagens.
Os mais de 40 extratos de filmes apresentados na exposição são
como que tensionados uns aos outros, levados ao limite de suas
possibilidades significativas. Mas, o que é o limite se não uma
dobra, uma chegada a um ponto onde outra coisa começa? É assim
com as imagens da TV (TF1 e Eurosport) ou o filme pornô.
As salas 2 (anteontem) e 3 (ontem)
são conectadas por um trem elétrico que se movimenta de uma sala
à outra: o cinema, nos diz Godard no filme Vrai Faux Passeport
de 55 minutos que ele realizou para a exposição. Um filme todo
construído com imagens tiradas da TV e do cinema,afirmando, assim
como na exposição, a forma como Godard se insere como mediador
privilegiado na era dos DJs, VJs, etc. A matéria prima do artista
aqui já é uma matéria segunda, imagens de imagens, clichês revistos.
No filme, Godard inventa uma taxonomia, uma classificação onde
todas as imagens parecem caber. No filme, inicialmente, há uma
relação dicotômica que se forja: imagens “boas” (bonus)
e “más” (malus) – o que não deixa de ser um alento. A lição
é simples: o excesso é diferente do vale-tudo.
Voyage(s) en utopie, à la recherche d’un théorème perdu
apresenta a viagem se constituindo como passagem, como lugar de
movimento e descoberta. Sair de casa, só se torna uma viagem se
o que encontramos é diferente do que poderia ser esperado ou imaginado.
É a própria viagem de Godard em suas imagens e na cultura do século
que impossibilita o teorema.
E o espectador? Em um primeiro momento poderíamos
supor que o espectador está em liberdade para fazer seu próprio
caminho e pensamento, mas tal explicação, tão freqüente e singela
em relação às obras que não explicitam os fios narrativos, não
nos serve aqui. A forma como
Jacques Rancière define uma poética
talvez nos ajude a pensar essa relação da obra com o espectador:
uma poética não tem destinatário específico, não procura uma escrita
ou posição de legitimidade em relação a um saber estabelecido
e a um campo de saber, se autoriza a múltiplos efeitos e se coloca
na impossibilidade de fazer coincidir verdade do que narra com
sua escrita ou com a própria forma de apresentar um determinado
universo.
A poética da qual fala Rancière
não se confunde com um relativismo que, assim como a retórica,
se sustenta em um discurso autônomo (cada um entende o que quiser).
A poética constitui uma “verdade que se dá na textura da narração”.
Talvez seja uma aproximação com a verdade das imagens e de sua
própria história que nos mobiliza na exposição. Uma verdade que
se inventa na poética afirmativa e engajada de Godard.
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